sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

SILÊNCIO MARINHO

Foto por Fernando Campanella


"...Mas escuta, ó meu coração, o canto dos marujos!"

(Mallarmé)


Não sou um homem de cartas marcadas,
o destino, vulgo sorte, fez-me à parte,
não me quis.
Tranquei-me em chaves desde a infância
e onde as deixei, esqueci.
Na contramão das grandes rotas, não demarquei
terras, não publiquei um livro, não amealhei
títulos ou troféus -

não me mudei quando jovem para Nova Iorque
não me viu a TV, nem me fisgaram
os olhos oblíquos dos jornais.

Semeando em campos tão áridos, que cansaço
trazem as glórias do mundo, a mim, que delas fugi,
e nunca as colhi. 

Somos dois? Somos tantos, companheiros?
Embebedemo-nos de nosso infortúnio
até o fastio, até sangrarmos, pois

e dobremos os lenços, desbravando o silêncio,
dos elos fortuitos, das graças modestas,
que vem do mar. 

 Fernando Campanella

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

COM A MEDIDA DO BONFIM

Foto por Fernando Campanella

A moça na janela
não usa brinco de pérola
mas também atrai pelo olhar
toda alma de artista 

é da Bahia, traz na voz
o molejo dos Nagôs
e no pulso direito
a fitinha do Bonfim.

Que destino lhe aguarda?
Vender água de coco pra turistas
como sua avó 
ou tapioca pelas ruas
como a tia?

(Desde os tempos de criança
tem um desejo - me diz querer
ser pintora, ou ampliar seu universo 
na arte da fotografia.)

A moça na janela...

Que Oxum regue a branca rosa de seu peito. 
Que o Senhor de todos os santos 
vele por seus sonhos, e preserve um tal sorriso -
que é dos simples - de menina -
que, eu que parto, guardo comigo, levo dela.

Fernando Campanella




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

RESPONSU

Foto por Fernando Campanella

Naquela estradinha de terra que me levava ao Pantano dos Rosa, Zé Grandão, em sua carroça, levando silagem ao gado, com o cigarro de palha na boca, deteve-se em seu trajeto e contou-me por quase um par de horas um tanto da história de sua vida. 

A certa altura, disse-me:

- Minha madrinha tem responsu com Santa Luzia.

- Responso? - perguntei.

- É, responsu. Quando tem uns pobrema dos bravu comigo, qui num consigo resolvê, vou na casa dela, tomo a bênção e mostru a fechadura. Ela reza então pra santa, no altarzinho da sala, se sacodi em tremura e me diz: "Pode ir, meu fio, tudo se ajeita, o que é pro teu bem já tá marcadu."

E completou:

- E eu sempri encontrei a chavi.

(Fernando Campanella)


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O LIVRO DE CESÁRIO VERDE

Fotos por Fernando Campanella

A dor humana busca os amplos horizontes
E tem marés, de fel, como um sinistro mar.
(Cesário Verde)

(Crônica dedicada ao meu amigo fotógrafo e poeta Warllem Silva)
É tão revigorante fecharmos os olhos às vezes, lembrando-nos de alguma viagem de nossos sonhos, realizada e completa, algo fora, bem longe, da sucessão de nossos costumes e hábitos.
Quando cerramos as pálpebras, é aquela memória grata que nos vivifica. Minha ida a Arraial D’Ajuda, Bahia, foi uma dessas viagens, o lugar ideal, com as pessoas e os passeios certos, tudo parecendo ter sido planejado para a mais intensa e feliz fruição.
Eu poderia descrever as maravilhas daquela semana no sul da Bahia, apresentando um registro cronológico de tudo que conheci, dos sabores, aromas e cores que vivi, restaurantes, praias e centros históricos por onde passei, mas não tenho o hábito para a escrita de diários, ou folders de companhias de turismo.
Assim, bem além da cinematografia daquelas horas vividas, e não descuidando da importância das emoções, alegres emoções, partilhadas com amigos, é a poesia, sobretudo uma modesta reflexão sobre o valor dos poetas, o que me motiva a escrever.
No último dia de nossa viagem, visitamos um sebo em Porto Seguro. Um local muito aprazível, com seus livros meticulosamente organizados, e um espaço, com decoração clássica e aconchegante, para café.
Após entrarmos à livraria, um grande amigo fotógrafo, anfitrião de minha estadia em Arraial, deteve-se diante de uma estante na seção de poesias, logo encontrando o livro “Mensagem” de Fernando Pessoa, o qual comprou.  Até aí, tudo normal, mas meu amigo também adquiriu “O Livro de Cesário Verde”, o que me deixou, mais que surpreso, maravilhado.
Comprar um livro do Pessoa, tão renomado, embora para poucos, enquadra-se nas preferências de quem gosta de poesia. Quanto ao livro do Cesário Verde, poeta, cujas criações foram desprezados pela crítica de sua época, mas louvado por Pessoa, que apreciou, "além da sensibilidade e beleza de seus versos, a sua extrema lucidez da visão do mundo", já se torna mais raro, bem mais raro, comprá-lo.
Meu amigo, além de exímio fotógrafo, é também poeta. Daí talvez se justifique aquela descrição "...é um poeta para poetas", aplicada, neste caso, a Cesário Verde. Ao vê-lo adquirir o livo, lembrei-me imediatamente de um poema de Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, que em um trecho nos diz:
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os ohos
O livro de Cesário Verde...
(Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, poema III)
Eis, assim, o poder, a continuação da poesia, mesmo a de autores menos conhecidos, visto que  que os poetas se buscam, se entendem, e mutuamente se inspiram. Gratificante, saber que Cesário Verde, obscuro à mídia, ao grande público, possa ser procurado, e lido, mais de cem anos após seu falecimento. E como não desejar que alguém, talvez um poeta, também leia meus versos, em algum sebo, futuramente, quando eu já não me encontrar “no quadro sucessivo das imagens externas / a que chamamos o mundo”, nos versos de Álvaro de Campos. Se houver ainda sebos.
Fernando Campanella