quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CARTAS AO EU ( I )


Foto by Fernando Campanella

Meu caro Eu, este é um momento em que ao meu privativo quintal eu saio. Aqui o mundo me é suave, digerível e palpável.

Toco em uma chuva fina de cristais ralados , molhando ibiscos, e em samambaias selvagens que emergem das fendas dos muros, ao lado. As úmidas mil-folhas no vaso são pespontos em nossa alma bifurcada.

Tudo aqui planamente vital. Pudesse eu saciar o coração em fome por estas ternas formas.

Estes pombos sujos de ferrugem dos telhados são especiais efeitos nesta cena, neste teatro de paisagens. As nuvens concedem, às vezes, um azul: entro e saio.

Aqui tudo é pleno meu amigo, tudo tão desarmada simplicidade. Tua mente é que coloca significados, coisas além das coisas, vê deuses em cabeças de pombos. Tenta refrear, meu caro, esta tua insistência por signos alados.

Gosto de me aprofundar em uma certa fragilidade que me toma ; às vezes, de certas naturezas, chega à minha alma o sopro de um velho, bucólico, daimon. Sei que você me entende com uma amiga serenidade.

Uma percepção induz-me agora a um pio - psiu - ouço um tilintar de luzes, um saltitar de pássaros... Um silêncio, um prolapso, uma abelha saindo de meu limbo, um posfácio:


Um ceifeiro vem de meu jardim
certas pragas arrancar
porém de uma se esquece
e esta ,sorrateira,
vinga o descuido em flor.
Cinco mínimas pétalas
em cor
que a meu coração de abelha
vêm sedutoras tentar.
Obrigado, ceifeiro,
sem pudores te confesso:
nestes pistilos me deito,
me esfrego nesta flor mais rara
das tantas que já vivi a namorar.


Fernando Campanella, Janeiro de 2007

O QUE É QUE A BAIANA TEM?



Foto do Flickr ( Galeria de Iñigo Garcia)

Cem anos de vida estaria completando Carmen Miranda nesta semana de fevereiro de 2009. Justas homenagens são prestadas na mídia a esta que foi, talvez, junto de Pelé, a maior representante do Brasil mundo afora.

A portuguesinha do distrito do Porto, com alma de brasileira, como ela própria se definia, veio a ser um fenômeno de alegria e brasilidade. Seus detratores podem argumentar que ela, com seus turbantes, balangandãs e salto plataforma, tenha contribuído para um estereótipo de nosso país, uma nação que não é séria , na visão do estadista britânico francês Charles de Gaulle. Mas foi como nosso espelho, nos mostrando a nossa melhor face, nossas cores e sensualidade, sem modéstia ou falsos pudores. Longe do estigma de uma certa política corrupta, mostrou um Brasil que pode e deve se amar, se enfeitar, celebrando o viver.

Dos vários epítetos com que lhe aclamaram, de Pequena Notável a ‘Brazilian Bombshell’, ( algo como 'explosão brasileira') , rejeitou o de Embaixatriz do Samba, que considerava avacalhação. Talvez porque seu repertório contemplasse não só o samba, mas toda uma riqueza de gêneros musicais nacionais como samba canção, chorinho, marcha, marchinha de carnaval, cateretê , chegando à rumba e ao tango.

E fez escola esta inigualável artista, este mito, com seus sons e movimentos esfuziantes, irreverentes, sua pitoresca indumentária. Vivendo em época de alfaiates e modistas, onde nem se sonhava com design de moda, tem exercido influência em gerações e gerações de modernos estilistas, cantores... Madonna confessa ter se inspirado em seu estilo na composição de seus adereços. Escolas de samba, museus, peças de teatro, biografias e musicais sempre a revisitam e lhe rendem as honras que merece.

A pequena-grande notável fez muito por nossa cultura popular. Cantou na linguagem da mulher simples, do homem do povo, do 'malandro' carioca. Gravou composições de ícones de nossa música, como Ari Barroso, Joubert de Carvalho, Synval Silva ( a maravilhosa ‘Adeus, Batucada’) Lamartine Babo e Dorival Caymmi, e tantos outros. E levou para o mundo o que aqui existe de genuinamente bom, diferente dos que se curvam a fetiches de primeiro-mundismo. Nada como sua arte, para vermos, restaurado, o saudável orgulho de sermos uma terra pródiga em nossos próprios frutos, e não uma republiqueta de bananas.

O Brasil de Carmen era essencialmente tropical. E tropical era, para ela, uma palavra ‘quente’, segundo a jornalista e amiga Dulce Damasceno de Brito. Palavra que ‘simboliza todo o espírito de nós, latinos, principalmente em época de carnaval’. Nossa alma, tão assim latinamente assumida, e revelada, agradece.

Seu falecimento em 1955 foi como um apagar de uma chuva de meteoros que eletrizaram por vários anos o Brasil e o mundo. O sepultamento no Cemitério de São João Batista teve, nas palavras do jornalista e historiador Abel Cardoso Junior(1938-2003), o acompanhamento mais concorrido de toda a história do Rio de Janeiro. O Brasil que Carmen tanto amou e representou lhe rendeu homenagens de grandes líderes da História.

Fernando Campanella, 09 de Fevereiro de 2009