domingo, 29 de dezembro de 2013

GAVIÃO-FUMAÇA

Foto por Fernando Campanella

- Tio Raimundo, um gavião desceu no quintal e quase pegou  o sabiá na gaiola. Eita bicho malvado.

- Foi o sabiá que te dei, foi?

Tio Raimundo trouxera o pássaro ainda filhote para o sobrinho. O bichinho caíra do ninho e seria presa fácil de alguma cascavel. O menino o criara em uma bela gaiola com todo carinho, alimentando-o, conversando com ele na linguagem que só a alma em estado graça pode ter  com os bichos. Haviam se tornado grandes amigos.

- Bicho malvado o gavião, tio – insistiu o menino.

- Não é bem assim, meu filho – disse o tio com aquela sabedoria de quem permaneceu criança  e tem um pacto secreto com a natureza, característica que o sobrinho, ainda sem racionalizações, mais admirava no tio.

- Não é bem assim não –insistiu o tio – nunca chame os animais de malvados, a natureza deles não é a mesma dos homens. Vem cá, senta aqui, vou te contar uma coisa que vi, que vai fazer você mudar esta cabecinha.

O sobrinho sentou-se bem junto do tio, e atentou os ouvidos, presa do encanto das histórias que aquele homem sempre contava.

- Uma vez, voltando da cidade, passei pelo sítio  do João Teodoro, lá pelas bandas do Paiolinho. Ao dobrar a curva depois da casa do João, deparei com um fogaréu na mata, desses incêndios criminosos tão comuns por aqui,  coisa de doer a alma. Parei meu carro, meio pesaroso, sabe, pois a cena era por demais triste.  Em uma árvore alta , próxima ao fogo, vi um gavião muito compenetrado, olhando para aquela danação  toda. O bicho estava triste, posso te jurar, eu senti isso pelo jeito que olhava a mata em chamas. Deu até vontade de chorar. Ali naquele incêndio provocado pelo João Teodoro provavelmente  haviam morrido a fêmea e os filhotes em uma daquelas árvores mais altas. O gavião macho ficara sozinho, soziinho  no mundo. Quando voltava com algum alimento para a família deve ter presenciado  toda aquela desolação.

- Nossa, tio, coitado do gavião.

- Sim, meu filho, o bicho estava sofrendo, imagina perder toda a família naquele escarcéu  de fogo... Foi uma das cenas mais doídas que já vi na vida. Se a gente se põe no lugar daquela ave, menino, sentindo a perda de uma família, podemos sentir o que o animal estava sentindo.

O menino ficou em silêncio, imaginando aquelas chamas, sentindo toda a dor do gavião.

- Mas, veja bem – continuou o tio – agora vem a parte mais bonita da história... Alguns meses depois quando por aquele lugar passei  vi um gavião em uma árvore junto a alguns bem-te-vis ainda filhotes.  Pareciam alegres, brincalhões, atrevidamente amigos. E pensei: como pode? Gaviões são os piratas dos ares, por todos bichos menores temidos. Eu não tinha explicação para aquele milagre.

- Então me lembrei, só podia ser isto: o pirata encontrara seu tesouro definitivo, uma família, ficara amigo de um casal de bem-te-vis com seus filhotes. Fiquei ali por algum tempo, observando e logo chegaram os pais com alimento. Tudo parecia em ordem, em paz. Eu nem acreditava no que via...

Mais tarde,  após o tio ter ido embora,  ao contar aquela triste e ainda linda história  ao pai, o menino dele ouviu:

- Olha, meu filho, é bom que você saiba, o tio Raimundo é boa pessoa mas imagina demais. Aqueles gaviões que ficam perto do queimadas na roça são chamados de gavião-fumaça. Ficam ali um tempão à espreita,  esperando os bichos saírem em desespero para atacar as presas. Esta estória de amizade deste bicho com os pássaros é pura fantasia.

O menino, decepcionado, sentiu-se bastante confuso  com a explicação do pai que  já fora sitiante  e entendia de bichos. Mas  lembrou-se do fogo na mata, da violência do ato e,  por algo inexplicável em sua alma, decidiu  adotar a história do tio como a  mais necessária, inquestionável   verdade. 

Fernando Campanella, 2009.



terça-feira, 3 de dezembro de 2013

AQUARELA DIGITAL

Foto por Fernando Campanella

bananais
lírios do brejo
reticências e sapos

em transparências digitais
a aquarela de Minas
é meu exílio na tarde

Fernando Campanella