Foto by Fernando Campanella
(Corro o mundo pela beirada,
minha carroça, seu moço,
é o que levo da vida,
meu cavalo
é o vento que me guia na estrada.)
- Por causa da queda dos anjos, homi é fantasma, muié é bruxa, criança é saci.
Com o apregoar de seu imaginário, Seu Jorge se achega, ali no parque das águas, vindo do nada, da névoa de seus cento e um anos que lhe impingiu uma catarata nos olhos. Uma relíquia, um esperto fantasma que puxa prosa comigo.
Estou de visita, digo a ele, não sou daqui - mas para que explicação? O homem firma espaço de mansinho, fala da idade avançada, da esposa que já partiu e não lhe deixou filhos, e da ‘muiezinha’ que mantém em casa, sua única companhia: um radio de pilha onde ouve músicas de seu tempo.
O homem almeja, na verdade, uns trocados. Para quantos se orgulhará da longevidade? Quantos não ouvirão seus ‘causos’, suas lendas, seu passado quase se confundindo com memórias ouvidas da Estrada Real, antiga rota do ouro de Minas, e suas próprias lembranças das grandes matas que então havia? Mas é ele que me paga com o veludo da sua oratória , o encanto da voz, com os relatos da catarata avançada e da descrença que traz dos doutores –‘ minha pouca visão, meu filho, abro com a bênção das águas desta cidade.’
Dou-lhe umas moedas então e ele me diz que sou alma boa, que vai rezar por minha saúde. As contribuições dos turistas do balneário complementam a renda da pensão que recebe, ajudando nos duzentos ‘mirréis’ do aluguel e em outras despesas da casa. Vai comprar uma abóbora madura e pão com o dinheirinho arrecadado, não sem antes fazer uma ablução diante da imagem de Nossa Senhora da Saúde ali no parque. Acima das águas, só ela pra lhe afastar os demônios, deixar mais firmes os olhos e a articulação.
Nunca bebi, nem fumei –diz –me, ainda. E completa que o Divino Espírito Santo é seu companheiro no prolongado obscurecimento dos dias.
O avozão passa-me, assim, uma boa lábia, na captura de mais um turista a esmo. Despeja lições já tomadas , retomadas , de que da vida nada se leva, nada permanece. Porém, vindas daquele homem centenário, revestem-se tais verdades de um outro quilate , uma autoridade, por exemplo , de quem abriu um mar , ou de um vaga-lume só com a própria luz a contar.
Seu Jorge lembra-me um monge urbano, um museu itinerante. Coração que abraçou o sossego. Matreira sabedoria em extinção. Com sua figura, o calcário dos olhos, um intrincado desenho de raízes na face, o homem é um mito que de repente toma corpo , sopro de um vento, um sino de Minas.
Ao deixar o parque , após nosso breve encontro, despeço-me de um bruxo. – Sua benção, meu grande pai, até mais ver nas encruzilhadas do mundo.
E levo comigo a imagem de uma chama que não teme a cinza, a fagulha dos olhos de um encantador de sereias. Um tempo que tudo viu, o anonimato dos simples, um perdão.
Fernando Campanella, 03 de junho de 2007