domingo, 15 de novembro de 2009

CAIXA-PRETA ( TUDO ESTÁ DITO)



Obras de poesia Concreta e Neoconcreta:
'Caixa-preta', 1975 e 'Tudo está dito',1974,
por Augusto de Campos e Julio Plaza

Tudo está dito
o dito pelo não dito
tudo ainda está
por se dizer.
(Fernando Campanella)

Sejamos tão somente amigos, minha querida. Evitaremos, assim, a dolorosa espiral de ciúmes, as armadilhas em que nos enfurnamos neste doce labirinto chamado amor.

Eu não mais por ti suspirarei, nem tu por mim. Nem mais estragaremos uma tarde mais-que-perfeita por uma palavra impensada, mal-dita. Não nos enredaremos na desgastante lavagem da roupa suja, na infinita listagem de nossos bravos atos em nome de nosso abnegado e sofrido amor, o saldo sempre posititivo para o próprio lado.

Eu me esquecerei de telefonar, de enviar aquelas flores, tão óbvias e comerciáveis. Viajarás com mais frequência, fruindo mais a vida, sem mim. Dormiremos até mais tarde, em quartos distantes, e prosearemos mais longa e languidamente com nossos outros amigos, sem posterior prestação de contas de onde estivemos , por onde andamos, etc. etc.... Retomaremos o fio rompido de nossa individualidade.

E, sobretudo, seremos mais pacientes , perdoaremo-nos mais sabiamente as omissões e os erros. Abriremos o coração, sem escrúpulos. Amigos até o final de nossos tempos, na alegria e na dor.

Melhor ficarmos assim, então, o que me pouparia até de escrever-te e mails melosos, esdrúxulos como este . Amigos com transparência de alma, como água na luz. Poderíamos abrir sem dedos nossas caixas-pretas, com a mais grata certeza de incondicional compreensão.

Mas assim sendo, suplico-te, somente não me fales de teu novo amor, eu não suportaria detalhes de tua outra alegria.

P.S. Pensando melhor, fica o dito pelo não dito, deixemos nossas caixas-pretas em um mar profundo, lá na fossa das Marianas, ou de Mindanau. E que por lá fiquem, seladas, emudecidas. Ou desapareçam, misteriosamente no triângulo das Bermudas, para todo o sempre.

P.S.II Ah, ia me esquecendo, adoro enviar-te e mails ridículos, dizer-te o já-tão- dito, sempre, amado amor.

Fernando Campanella