segunda-feira, 29 de março de 2010

À NOITE SONHAMOS


Lua nova
Foto by Fernando Campanella

...À noite sonhamos em um céu de metáforas
onde a mínima lua é unha que arrepia segredos
estrelas são hangares pequeninos
e a sombra, um lobo dócil que nos chama.

À noite rompemos degredos
volvemos aos ninhos
somos meninos -
infância distraída de seus medos.

Fernando Campanella


Notas:
1) Devo estar em uma fase lunar, realmente. Mas, revisitando meus poemas, percebo que há no que escrevo quase sempre uma lua, vaga ou explícita, a tocar minhas palavras.

2) Agradeço à minha amiga Maria Madalena que desde o início de nossa amizade acreditou no poema acima, e o adotou, tornando seus esses meus versos.

3) Ouça,abaixo, a Berceuse Op 57 de Chopin, tocado por Arthur Rubinstein.


domingo, 28 de março de 2010

VÓRTICE


Foto by Fernando campanella

carente
é juba sem pente
dente sem osso

fosso

mundo girando
em vórtice fundo

dentro sem beira
tempo sem flora
quando sem quando

alma que mente
boca que tudo piora

céu sem relento
buraco negro
estrela sem glória

amor indigente
serpente
que a cauda enrola

ora pro nobis

esfinge
que se devora

Fernando Campanella


Vídeo escolhido para esta postagem: Trecho da suíte para piano Op 25, primeira parte, de Arnold Schoenberg, executada por Glenn Could.



Nota: O compositor austríaco, Arnold Schoenberg, 'compôs obras que hoje classificamos como "atonalismo livre". Este conceito tenta dar sentido a uma prática que abandonou as hierarquias tonais. Não mais uma família de 7 notas centradas na polarização entre tônica e dominante. Agora o total cromático de 12 notas passava a ser usado como se todas tivessem a mesma importância...'

(Informação transcrita do blog 'Página de Cultura, por André Egg, link abaixo.)

quarta-feira, 24 de março de 2010

CONTOS DA LUA

Lua crescente
Foto by Fernando Campanella

lua, lua, lua,
três vezes giro
para retornar à fria
estática de teu silêncio
(Fernando Campanella)

I

após a chuva
a lua em bruma
expele um halo

e na lagoa rasa
passo a noite
engolindo os sapos

II

a lua banha o rosto
na lagoa

- peixes miúdos
transparecem
nesse oceano ralo

III

resguardo os amantes
estanco as ondas
e as marés -

no conto da lua
esta noite
claramente eu não caio

Fernando Campanella


Vídeo escolhido para esta postagem: 'Autum moon over the calm lake' (Lua de outono sobre o lago calmo), canção tradicional chinesa.

quinta-feira, 18 de março de 2010

POR ENTRE NUVENS COMPARTIDAS


Foto by Fernando Campanella


... a uma luz inclinada
por um certo sopro de outono
às vezes a tarde me quer voo
em transparências de azul
por entre as nuvens compartidas...

Fernando Campanella

- Ontem enxerguei um belíssimo arranjo de nuvens no céu ( foto acima). Registrei a imagem e quando a transferi para o computador vi que seria uma perfeita ilustração para o poema da postagem anterior , 'A tarde às vezes me convida'. Um pouco atrasado, mas não tão tardiamente assim, pois sempre há tempo para nova postagem e a outra imagem está em harmonia com o poema que ilustra. Disponho das duas, pois, e o trabalho fica completo.

- Oficialmente, o outono começa daqui a alguns instantes, às 14.33 de hoje, 20 de Março de 2010.

Época de muitos significados... Retiro então do baú deste blog uma poema apresentado nesta estação, no ano passado. Fica o mesmo como boas-vindas a esse tempo que tanto aguça minhas percepções, que me remete ao poeta antigo, intimista, o qual teima em existir, fala-me de suas coisas, e recusa-se a 'bater as botas' dentro de mim.


um estalido
cai uma folha seca
no quintal

factualmente

e o poeta retoma a velha tecla
e bate, bate
todo outono que sente

Fernando Campanella

A TARDE ÀS VEZES ME CONVIDA


Foto by Fernando Campanella

A tarde às vezes me convida
para um volteio nos campos
entre contornos de montes
ante o silêncio de uma ermida

a uma luz inclinada
por um certo sopro de outono
em transparências de azul
às vezes a tarde me quer voo
por entre as nuvens compartidas

- a tarde se esquece às vezes
louca e lindamente
que não tenho o descompromisso
das aves, que sou gente.

Fernando Campanella,

(Poema dedicado à minha amiga Maria Madalena)



Vídeo escolhido para esta postagem, 'Teahouse moon', by Enya

segunda-feira, 15 de março de 2010

SR. ANTONIO ROQUE


Foto by Fernando Campanella

"...Eu sou velho o suficiente agora para fazer amigos..." (Ezra Pound)


Hoje viajo àquela pequena cidade em busca do Sr. Antonio. Conforme relatado na postagem anterior, vou entregar-lhe a foto que dele tirei, como um presente.

Descubro o endereço de sua sobrinha, vou até sua residência e me apresento. E fico sabendo do falecimento do tio, ocorrido há alguns meses.

Cheguei um pouco tarde, meu amigo já havia partido. Mas entrego o presente à mulher. E sou por ela informado que ele nunca deixava que o fotografassem. Eu me lembro que resistira, a princípio, quando o abordei naquela tarde, pedindo-lhe um retrato. Tive um privilégio enorme, então, ao conseguir meu intento.

A senhora , emocionada, pergunta-me sobre o preço de meu trabalho. Peço a ela somente que coloque a foto em uma bela e resistente moldura. A imagem deste 'rei de outros tronos', será assim eternizada.


Indaguei-lhe sobre alguns detalhes da vida do tio. Antonio Roque, esse o seu nome completo. Trabalhara a vida toda na roça, nunca se casara, sempre fora uma pessoa calma, de bem com a vida. Com o benefício de um salário do INSS vivia com a sobrinha, seu marido e filhos.

Fico sabendo também, com alegria, que dissera à família à época que alguém havia tirado sua foto na rua.

Faleceu aos 79 anos de idade, de pneumonia. No hospital de uma cidade maior, onde fora internado, os enfermeiros disseram à sobrinha, após sua morte, que no período lá recluso, seus dias finais, permanecera sempre calmo, de nada reclamando, 'indo para o abatedouro que nem um cordeiro'.

Nem preciso mencionar minha tristeza por ter me atrasado em procurá-lo, não podendo entregar-lhe a foto em mãos e dizer-lhe como ficara bem nela.

Esta estória poderia ter tido um outro final. Eu visualisara o sorriso de contentamento do Sr. Antonio, seu agradecimento, um belo reencontro entre nós nestes vai-e-vens da vida. Não era para ser assim, porém.

Meu amigo agora navega um rio mais profundo, anterior ao de sua aldeia, ao Congo, ao Nilo...




(Fotos têm estórias por trás. Talvez aí resida grande parcela do encanto, do fascínio da fotografia.)

Fernando Campanella



Música escolhida para esta postagem:

sábado, 13 de março de 2010

UM REI DE OUTROS TRONOS


Sr. Antonio, foto gentilmente autorizada.
Foto by Fernando Campanella


O NEGRO FALA SOBRE RIOS


(UM POEMA DE LANGSTON HUGHES)


Conheço os rios:

rios ancestrais como o mundo
e mais remotos que o fluxo de sangue humano
em veias humanas.


Minha alma tornou-se profunda como os rios.



Banhei -me no Eufrates quando a aurora

era ainda criança.
Construí minha choupana às margens do Congo
que me adormecia com suas canções de ninar.
Voltei meus olhos ao Nilo e acima dele
alçei as pirâmides.
Ouvi o canto do Mississipe quando Abe Lincoln
até Nova Orleans por ele navegou
e vi seu coração lamacento dourar-se por inteiro
a cada declinar do sol.


Conheço os rios,

rios nevoentos, imemoriais.


Minha alma tornou-se profunda como os rios.


(Tradução de Fernando Campanella)

Quando tirei a foto do Sr. Antonio, acima, há aproximademente um ano e meio atrás, ocorreram-me, de pronto, o título 'Um Rei de Outros tronos', assim como um belo poema de Langston Hughes que havia lido.

Ontem ela foi colocada em papel, e me surpreendi com sua beleza e nitidez. Detalhes maravilhosos aparecem, como os sinais do longo tempo vivido, no rosto, nas mãos, nas veias do pescoço, etc. Tempo que passa, assumido, carregando sua intrínseca beleza. Enfim, uma impressão que me alegrou imenso. Fiquei motivado, então, a concretizar esta postagem.

O sr. Antonio está muito bem na foto. Agora vou tratar de encontrá-lo em uma pequena cidade onde mora para entregar-lhe o presente. E fico com o que ele me ofereceu, inicialmente, concedendo-me a imagem e a inspiração para a apresentação no blog.


A ligação entre a imagem, o título e o poema do Hughes fica na esfera do mistério que envolve todo ato de criação artística. Em algum subnível de minha mente tal ligação já havia sido feita, se o leitor conseguir estabelecer a sua , própria, íntima, com outros olhos, ficarei muito feliz.

(Descobri uma bela tradução do poema feita por Carlos Machado em seu site poesia.net http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet011.htm. No referido site pode-se encontrar também , além do poema em questão, alguma informação sobre o poeta norte-americano. )

Um grande abraço aos meus queridos amigos que aqui me visitam.

Fernando Campanella





THE NEGRO SPEAKS OF RIVERS
(Langston Hughes)

I've known rivers:
I've known rivers ancient as the world and older
[ than the flow of human blood
[ in human veins.

My soul has grown deep like the rivers.

I bathed in the Euphrates when dawns were
[ young.I built my hut near the Congo and it lulled me
[to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids
[ above it.
I heard the singing of the Mississippi when
[ Abe Lincoln went down to New Orleans,
[ and I've seen its muddy bosom turn all
[ golden in the sunset.

I've known rivers:Ancient, dusky rivers.

My soul has grown deep like the rivers.


domingo, 7 de março de 2010

QUADRO (SOB A CHUVA)


Pintura de Salvador Dali
http://tattooa1000.blogspot.com/2009/12/
mediumnistic-paranoiac-image-1935.html


Na chuva falava-me a louca
''meu marido me diz
que não valho uma cabaça d'água''
e juntava as mãos em concha,
rindo a não mais poder.

E dançava, gritando
''vai cum Deus meu fio''
quando dela me afastei.

Sob aquelas águas quis dizer-lhe algo,
uma expressão que ouvira na infãncia,
''não valemos mais que um fumo picado''
mas apenas voltei -me e lhe acenei com as mãos
''vamos todos cum Deus, Senhora''.

Fernando Campanella

Música para esta postagem:
Da trilha sonora de 'Amarcord' de Federico Felini, 'Orchestral suite' 1/3 de Nino Rota.

quarta-feira, 3 de março de 2010

EFEMÉRIDES (MARÇO)


Embaúba ainda jovem, ao centro.
Foto by Fernando Campanella

Março abre os cômodos da casa.
Chegam formigas, pulgões, macacos
e nas embaúbas se instalam.

Preguiças úmidas, prateadas
também em mim se hospedam
em simbioses mais raras.

Fernando Campanella




O vídeo acima apresenta a composição 'Dream' do músico norte-americano John Cage (1912-1992).

Segundo o site 'UOL EDUCAÇÃO', Cage, com suas concepções artísticas, rompeu com toda tradição musical. O compositor criou um sistema atonal próprio e introduziu o silêncio como parte fundamental de suas criações. Em sua peça 4'33'' , por exemplo, um pianista inicia seu concerto onde não há nenhum som. apenas o ruído ambiente, os espectadores ouvem o som que emitem.

Em 1939 criou o 'prepared piano' (piano preparado) 'em que utiliza cortiças, pedaços de madeira, de papel e outros materiais entre as cordas do piano, transformando-o numa orquestra de percussão. Criou peças de concerto também para o novo instrumento'. (Site 'UOL EDUCAÇÃO)

Aclamado por Augusto de Campos como músico-poeta-pintor, John Milton Cage teve um espírito revolucionário, investigativo, adepto do Zen-budismo, entusiasta do poeta norte-americano Walt Whitman.

Poema de Walt Whitman:

Uma criança disse, O que é a relva? trazendo um tufo em suas [mãos;
O que dizer a ela?... sei tanto quanto ela o que é relva.
Vai ver é a bandeira do meu estado de espírito,
[ tecida de uma substância de esperança verde.

Vai ver é o lenço do Senhor ,
Um presente perfumado e o lembrete derrubado por querer,
Com o nome do dono bordado num canto pra
[que possamos ver e examinar , e dizer
É seu?

(Walt Whitman, Canção de Mim Mesmo, trecho do 'Folhas das Relvas, tradução de Hilda Hilst)

Obs. O poema acima foi encontrado no site 'Poesia.net - Carlos Machado, 2006)

Palavras de Cage:

"Quando eu era jovem, um de meus professores costumava se queixar de que assim que eu começava uma música, já a encaminhava para o final. (...) Eu introduzi o silêncio. Eu era um solo - digamos assim - no qual o vazio podia crescer."

Fontes:
1) UOL EDUCAÇÃO
2) WIKIPEDIA
3) Poesia.net, Carlos Machado, 2006