terça-feira, 26 de março de 2013

COTIDIANOS

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Imagem encontrada no site: DESCICLOPÉDIA


Reencontro em uma loja uma conhecida que há tempos não via. Pergunto-lhe, por educação, sobre o lugar onde atualmente mora. O que obtenho como resposta é uma série de críticas sobre minha cidade: a sujeira, a mendicância, as crateras abertas pelas chuvas nas ruas.

Entro depois em um banco com aquelas impressões negativas fervilhando em minha mente. Precisava retirar um talão de cheques e a fila na segunda-feira estava superlativa, extrapolando as linhas demarcatórias no chão, tomando até a escada de acesso àquele andar. A cidade onde minha conhecida hoje vive deve ser mesmo um “trem bom demais da conta” - pensei - pois lá inexistiriam filas quilométricas nos bancos, nos supermercados, como as daqui.  Eu teria que me aguentar por uns quarenta minutos naquela câmara de tortura, sem reclamar.

Haveria algum meio de amenizar aquela espera e o mau-humor incipiente? Pensei em um motivo, um material para uma crônica. Mas como extrair daquele emaranhado de rostos anônimos um gancho, uma história?

Escreveu Fernando Sabino: “... Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um...”. Essa, a alma da crônica. Mas parecia impossível encontrar naquele estabelecimento comercial, naquelas pessoas com suas conversas e seus celulares que a todo instante tocavam, a minha oportuna inspiração.

Eu corria os olhos por aquele labirinto de faces e gestos, buscando algo – e nada! Passei, de novo, o olhar, cautelosamente, e um garoto me chamou a atenção. Devia ter uns dez anos, estava com uma mulher que parecia ser sua mãe. Usava um boné com a aba curvada, para trás, uma calça jeans, uma camiseta azul e tênis preto. Um menino comum, porém com alegria e vivacidade nos olhos, na maneira com que gesticulava, conversando com a senhora. Eu queria ouvir o que dizia, descobrir o porquê daquele entusiasmo. Mas ele se encontrava longe de mim.

Passei, então, a observá-lo, apurando os sentidos, como um animal à caça. Era uma questão de vida ou aborto de minha crônica. Tentei me acalmar com a expectativa de que quando nos encontrássemos, frente a frente, eu poderia escutar a conversa e abocanhar o meu relato do cotidiano.

Aguardei, e o acompanhava de longe. A mulher parecia, de vez em quando, ler algo para ele, de um papel que tinha nas mãos. Os dois ludicamente se comunicavam.

Na disciplina de focar minha atenção, o tempo disparou. As campainhas dos caixas deviam estar tocando freneticamente, chamando os clientes, mas eu não as ouvia. Até que chegou o momento ansiado, eu e eles, frente a frente. Coloquei-me em alerta máximo, meus ouvidos como um gravador ultra-sensível, oculto em um formigueiro.

Embora tão perto, havia ainda uma estática. Redobrei a atenção. E revelou-se o motivo de toda aquela euforia. A senhora tomava do menino, como se tomavam as tabuadas antigamente, os pronomes pessoais e de tratamento escritos numa folha de caderno, preparando-o, talvez, para algum exame de Língua Portuguesa do colégio. Perguntava-lhe agora sobre a forma de tratamento para os papas, ao que ele respondia: Vossa Excelência; ela corrigia, dizendo: errou, é Vossa Santidade. Depois, tomando o papel das mãos da mulher, o garoto perguntou a ela qual era a segunda pessoa do plural dos pronomes do caso reto, ela errou, riram... E se distraíam naquela elástica cumplicidade.

Contagiado daquela leveza, como um antigo mágico, tirei alguns coelhos de minha cartola: restaurei minha cidade, esqueci o mau humor, ganhei minha crônica.     


Fernando Campanella

Egberto Gismonti, Maracatu, youtube enviado por thegiomas2