sexta-feira, 28 de setembro de 2012

REVOADA



Foto por Fernando Campanella


A súbita visão daquele redemoinho de centenas, talvez milhares, de aves no céu, no final da tarde, foi algo que beirou o numinoso. Elas passavam em voo baixo, em gigantescos bandos, frenéticas, e retornavam com a mesma intensidade, causando-me uma sensação de elemento estranho, ali, como se eu estivesse profanando um templo.    

O ruflar das asas, a aproximação da noite e a percepção de minha solidão inteira dentro daquela vibração selvagem avivaram em mim um remoto mistério, com tintas de pavor, a princípio. Pude vislumbrar, porém, a maravilha de um reino maior, que desencadeia as forças da criação, que a nossa história, e a nossos enredos, subjaz.
(Fernando Campanella)

"Aceite tudo a respeito de si próprio - quero dizer - tudo. Você é você e isso é o princípio e o final - sem pedidos de desculpa, sem arrependimentos." (Clark Moustaka, tradução de Fernando Campanella)


terça-feira, 25 de setembro de 2012

DONA ADÉLIA


Foto por Fernando Campanella

...o coração entre o lume brando
e a usura, esfumando
sem desprender a ternura.

(Fernando Campanella)


Dona Adélia estava sempre à janela quando eu passava em minhas caminhadas por aquela rua.


Todas as manhãs assistia missas pela televisão em sua sala, deixando um copo com água para "bentar", como dizia. Uma vez tomei dessa água.

Numa de nossas conversas, disse-me que o marido vestira o 'paletó de madeira' já há muito tempo e que vivia praticamente sozinha, tendo apenas visitas diárias de alguns parentes, e de um garoto vizinho que se afeiçoara a ela como a uma legítima avó.

No quintal de sua casinha havia árvores com orquídeas e bromélias, e canteiros com hortelã, rosas, manjericão...

Isso foi tudo que consegui saber nas poucas vezes em que nos encontramos. O que mais importa, para minha alegria, é que tenha me deixado tirar algumas fotos suas, em sua rica presença naquela humilde janela. E que também tenha me inspirado um poema, cujo trecho abre esta postagem.

Há alguns dias vim a saber que falecera. Vestiu seu 'casaquinho de madeira' definitivo para reencontrar o marido. Por sorte eu havia levado a ela uma das fotos de presente alguns meses antes, ocasião em que, ansioso por agradá-la, perguntei se tinha gostado do retrato. E foi com um sorriso meio a contragosto que me respondeu: gente velha não sai bem em fotografia, meu filho.   

Ainda não passei por lá após sua partida. Reluto em ver sua janela fechada, vazia.

Fernando Campanella


domingo, 9 de setembro de 2012

DOIS CURTOS

Foto por Fernando Campanella
I

MANTRA

vênus neons verspertinos
mégalos circuitos anímicos
hades angélicos felinos
lunas vitrines adoramus

II


NA NOITE ESCURA (SIGNOS)

O miado de um gato?
Um fogo fátuo?

Não.

Uma sirene
e um semáforo.

(Poemas por Fernando Campanella)

terça-feira, 4 de setembro de 2012

SAGA DE ASAS



Fotos por Fenando Campanella


Novembro, estação das chuvas, e as garças já retornaram, para nidificação, àquelas árvores junto ao velho rio Sapucaí. Centenas delas, diferentes tamanhos, cores, e espécies ( branca-grande, vaqueira ou boiadeira, socó-dorminhoco ou garça-cinzenta...).

Algumas, como as brancas grandes, exibindo suas egretas, penachos especiais no dorso usados para o ritual de corte.

É a época da reprodução. No ninhal já se veem as estruturas de gravetos e galhos secos, forradas de capim. Logo as fêmeas postarão os ovos verde-azulados, e os pais os chocarão e alimentarão os filhotes que vingarem.

Alvoroçadas com minha presença em seus domínios, emitem sons roucos, entrecortados, e brandem as poderosas asas quando de mim se afastam. Porém, jamais me atacam.

Quando pela primeira vez fotografei a colônia dessas aves , em meados de dezembro do ano anterior , os filhotes já estavam em seus ninhos, recém-nascidos, de uma beleza grotesca, plumas escassas , o bico enorme, desproporcional à estatura do corpo. Aproximadamente um mês mais tarde, em minha segunda visita, já eram adolescentes, com plumagem mais definida, em pleno ensaio para a rara beleza que portariam quando adultas.

Em Abril deste ano , por ali passando, não mais as vi. No outono, após as chuvas de março, baixando o nível das águas do Sapucaí, as várzeas da região do ninhal secam , dificultando para as garças encontrarem suas presas - plâncton, pequenos peixes e anfíbios - naquelas lagoas marginais. Em sua natureza migrante, as brancas grandes voam, então, para regiões de águas fartas, abundantes, como nas proximidades do imenso lago de Furnas.

As exóticas vaqueiras, insetívoras, rumam aos pastos em busca dos insetos do gado, abrigando-se em outros recantos. E do milagre dos instintivos rituais da vida, daquele clamor de sons e asas, restarão, ali junto ao rio, após partirem, tão somente algumas penas, fezes branco-acinzentadas e o silêncio dos ninhos vazios.

Agora, mais uma vez , em novembro, ali estão elas, os filhotes do ano anterior já são aves absolutas e plenas que, dando continuidade ao ciclo natural, postarão e chocarão seus ovos, revitalizando o local com o grasnar coletivo, o vôo elegante, as delicadas poses e movimentos de bailarinas.

Eu as aguardei durante longos meses para revisitá-las agora na estação das chuvas, meu coração como se atendesse a um chamado para registrar a renovação da vida em sua mais manifesta alegria. Mas até quando as verei, agrupando-se, vindas algumas de longe, impulsionadas por um misterioso código biológico que lhes assegura um santuário de procriação precisamente naquele sítio?

Contemplando-as na tarde, consortes , amantes em plena, festiva cumplicidade, ciente de que logo partirão, em incansável saga de asas, para cuidar de outras conquistas, lembro-me dos versos do poeta irlandês, Yeats, referindo-se aos seus selvagens cisnes de Coole:

"... Entre que juncos edificarão sua morada,

Junto a que lago, junto a que charco,

Deliciarão o olhar do homem quando um dia eu despertar

E descobrir que voando se foram?"

(Fernando Campanella, 22 de novembro de 2008)