segunda-feira, 5 de outubro de 2009

GRATIA GRATIS DATA


Foto by Fernando Campanella


"Gratia gratis data, unde et gratia nomiatur" [a graça é dada de graça, pelo que esse nome lhe é dado].

São Tomás de Aquino afirma que a graça divina é um dom gratuito, independente de nossos méritos. Santo Agostinho também insiste em que a graça não é dada pelo nosso merecimento, mas fruto da ação amorosa de Deus.

Heloisa Vilhena de Araujo, em seu estudo sobre a obra de Guimarães Rosa, pondera que o primeiro encontro de Riobaldo com Diadorim, quando ainda meninos, parece corresponder à gratia grátis data, ao auxílio da mão de Deus.
Relato de Riobaldo:

“Ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco. (...) O menino tinha me dado a mão para descer o barranco(...) Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim (Grande Sertão: Veredas,p. 80-82)”.

Gratia gratis data, expressão que, sempre me vem à mente quando contemplo minúsculas flores esquecidas, espalhadas pelos campos. Em um texto de 1994, referindo-me a estas, escrevi:

"Deus, na criação mais pesada do mundo, não se esqueceu das delicadezas, delegando responsabilidades, encarregando sensíveis jardineiros ( daimons, ou devas das flores) da distribuição destas sublimes 'inutilidades' que se espalham pela terra, gratia gratis data."

Em um contexto de tantos ‘ismos’ ( relativismo, fanatismo, tecnicismo...) essa expressão ainda nos acena como um farol. O divino , ou sagrado, ainda entreabrindo-nos as portas, ainda operando em nós.

Seja na contemplação de grandes espetáculos da natureza, ou de uma minúscula flor, como a da foto acima; seja na valorização da vida, através da arte que nos redimensiona, no amor, na ascese dos místicos, na responsabilidade social, na compaixão, na ética, enfim, que nos salva, ou na própria constatação de nossa finitude, enquanto natureza humana, em tudo Deus aderit ( se faz presente), com sua graça.

A cantora e compositora argentina, Mercedes Sosa, que faleceu no dia quatro de outubro passado, agradeceu em seus versos por essa graça da vida concedida, entenda-se por Deus:

"Graças à vida que tem me dado tanto
Me deu dois luzeiros que quando os abro
Perfeitamente distingo ...
No alto céu seu fundo estrelado..."

Fernando Campanella

Editora Mandarim. São Paulo, 1966.

Aqui, o trecho da fala de Riobaldo em seu primeiro encontro com Diadorim:

“Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. (...) Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. (...) Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não se fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira — só meu companheiro amigo desconhecido. (...) Disse que ia passear em canoa. Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco. (...) O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentante receio. Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. Eu não sabia nadar. (...) Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave ser, mas asseado e forte — assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível — o senhor represente. (...) Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim...

(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, p. 80-82)”.