sexta-feira, 1 de outubro de 2010

CARTAS AO EU (FRAGMENTOS)



... a beleza são esses achados, um certo conci-

liar entre o sentido que enxerga e as inesgo-

táveis manifestações da alteridade...



Fotos by Fernando Campanella



AO EU POETA OBSCURO

Meu caro eu, meu poeta obscuro, se as portas se fecham, acalma o coração que o Todo deseja. Deixa supurar o mar da fúria. Eu sou essa fúria espalmada, aquele caracol que de teu limbo escapa. Um ângulo da alma, um certo abismo que te chama. Mas não te deixes sorver por essa força que te toma. Aceita, escreve... E lembra-te: lesmas, abelhas, abismos não são propriamente aos quinze minutos de fama destinados.

Se a poesia te chama, empenha-te em colocá-la para fora com as ferramentas que te servem. E aos ouvidos que te pedem, fala...

Entra em bons termos com a mágoa. E que tua alma acolha mais e mais a dor dos elefantes...

Achega-te a mim, a tua secreta verdade...

Sente como é bom pernoitar no coração dos amigos que te acolhem, te apalpam. São eles teus termômetros, tuas asas.

Vai ao teu jardim, ama tuas flores, observa aquela luz que as ilumina e se transfigura em tua alma. A beleza são esses achados, um certo conciliar entre o sentido que enxerga e as inesgotáveis manifestações da alteridade. É o paradoxo encantado, ilusão que nos diz que não existimos sem o mundo, e este não vive sem nossos olhos. Expressa essa beleza que é essência, que ao espírito remete.

No mais, os dias passam, o sol diminui no ocaso seu passo. E tudo volta, com o novo dia, ao seu antigo hábito.

Ah, escreve para os elefantes. Dizem que eles não esquecem. Assim tua alma inteira irá se aquientando em tua casa...

Fernando Campanella




Tradução do trecho de Demian, de Hermann Hesse, apresentado em italiano no vídeo acima:

"... E me contou uma estória de um adolescente que estava enamorado de uma estrela.
Junto ao mar, estendia os braços para ela, adorava-a, sonhava com ela e lhe dedicava todos os seus pensamentos. Mas sabia, ou pensava saber, que um homem não pode alcançar uma estrela. Imaginava que seu destino era amá-la sempre sem esperanças e construiu sobre essa ideia toda uma vida de renúncia e de dores, muda e fiel, que devia purificá-lo e enobrecê-lo. Uma noite estava de novo sentado junto ao mar, no alto de uma escarpa, contemplando a amada, ardendo de amor por ela. E num instante de profundo anseio, saltou no vazio para alcançar a estrela. Mas ainda não pensou na possibilidade de alcançá-la e caiu, arrebantando-se contra as rochas. Não sabia amar. Se no momento de saltar tivesse força de alma bastante para crer fixa e seguramente na obtenção de seu desejo, teria voado para o ceu para encontrar sua estrela.

(Demian, Hermann Hesse)