quinta-feira, 18 de abril de 2013

CONHECIMENTO DAS CIGARRAS


Fotos por Fernando Campanella


Tão antiga a lenda da cigarra e a formiga, atribuída ao lendário Esopo, recontada por La Fontaine em várias traduções mundo a fora. E eu nunca vi uma cigarra ao vivo. Só escuto seu estridular infindo que às vezes vem martelar em meus tímpanos no verão.

Das onipresentes formigas, estou exausto: desfilam em intermináveis procissões atrás das sobras da cozinha, de outros cômodos da casa, obrigando-me a uma quase obsessão com a limpeza, penso duas vezes antes de tomar um café em meu quarto, em frente ao computador, no momento em que escrevo esta crônica.   

Nunca vi uma cigarra ao vivo, ou melhor, outro dia, quase as vi, agarradas no tronco de uma árvores, inúmeras, douradas, com seus ferrões como estiletes, assemelhando-se a escaravelhos de ouro. Pequenos seres em estranheza e mistério, a despertar antigo  pavor em mim. Douradas, secas, e mortas. Ocas, no tronco somente suas cascas ou invólucros.

Em meu vergonhoso desconhecimento desses bichos, imaginei-as tendo morrido, ali, subindo os troncos, devoradas pelas implacáveis formigas, só lhes restando a carcaça. Haviam morrido de tanto cantar, dizia-me meu lado poeta. Mas minha porção investigativa falou mais alto, fui às enciclopédias descobrir sobre o comportamento desses mitológicos insetos.

Ah, então as cigarras põem seus ovos em troncos de árvores, os quais eclodem em ninfas que descem ao subsolo, ali vivendo, na escuridão, por anos. Depois, ainda ninfas, retornam ao ar, subindo pelos troncos, e se desfazem dos exoesqueletos, tornando-se  adultas, em um processo denominado “ecdise”, ou “muda”.

As cigarras que observei haviam me enganado. Não estavam mortas, nem secas. O que eu presenciara foram suas “casacas”, seus invólucros dourados.  Lá em cima, nos galhos das árvores, agora me lembro, as danadinhas, ou melhor, os danadinhos, estridulavam para atrair as fêmeas.

Melhor ter como respaldo a ciência que desfaz superstições, lança certa luz sobre os mistérios e ciclos vitais da natureza. E é a ciência, também, que, ao meu entendimento, mais enobrece as cigarras, seres que das masmorras, da escuridão, de anos, anseiam pela luz, sofrem metamorfoses, e, na fase final, de breves dias, cantam, cantam, para a glória final da perpetuação de sua espécie, do amor. Na realidade, um canto ensurdecedor a longo prazo, proveniente de seus tímbalos  com  potentes decibéis.

É fato, também, que, ao contrário da fábula, esses insetos, na longa fase de ninfas, buscam incansavelmente por raízes para sua subsistência, jamais recorrendo às formigas, na penúria invernal, à procura de alimento E que estas, as formiguinhas,  coitadas, cegamente farejam alguma comida para levar à chefona, uma espécie de eminência parda, a rainha reprodutora, sempre oculta no formigueiro. Transportam, das cigarras, as carcaças, mas parecem ser duras, surdas a qualquer acontecimento que possa desviá-las da rota da subsistência. 

Talvez por isso, pela abordagem das necessidades eternas do homem, de pão e arte, a fábula de Esopo ainda seja tão pertinente, atual.  Outro dia vi um vídeo pelo Youtube, Le chant des cigales (O canto das cigarras), estória de Thomas Szabo, que mostrava formigas carregando alimentos, dia após dia, com o fundo musical desse canto. As trabalhadeiras pareciam alheias a tudo, devotamente concentradas no trabalho, como os escravos egípcios à sombra do faraó.  Cena após cena, no vídeo, o mesmo quadro enfadonho, e o canto daqueles insetos solto no ar. Apenas uma dessas formiguinhas sempre se detinha por um instante para ouvir, alcançando depois o bando. No final dessa fábula visual, ela junta-se à trupe das cigarras, passando a assoviar em harmonioso concerto com elas.  Maravilhosa releitura da antiga fábula, onde a formiga liberta-se do sistema coletivo, opressor, e percebe-se indivíduo, sob a égide, a leveza da arte.

Fernando Campanella