Milu, após a cirurgia, com seu cone protetor. Foto por Fernando Campanella |
Milu, com três anos de idade Foto por Fernando Campanella |
Quando meu cão voltou do veterinário,
trazia um aparelho enorme em torno do pescoço. Era um cone protetor, que
descobri chamar-se Colar Elizabetano. Nome pomposo para o que mais parecia um
abajur, cuja origem, acredita-se, remonta a um aparelho usado pela rainha
Elizabete quando criança, no século XVI, para evitar que a futura monarca
roesse as unhas dos pés.
Milu, meu cão fêmea, passara por
uma cirurgia, após exames de sangue e ultrassonografia. Começou com diminuição
de apetite e vômitos, tudo que ingeria não parava em seu estômago. O resultado dos
testes acusou a condição patológica de Piometra, uma infecção bacteriana no
endométrio, tecido que reveste a parede interna do útero, conseqüência de
prolongado estímulo hormonal.
Detalhes da
doença e da agressiva terapia - extirpação do útero e do ovário - viriam de
conversas com o médico veterinário, e de pesquisas que estendi para conhecer mais sobre o problema do
bichinho. Porém, todas essas informações acentuaram em mim uma ansiedade pela
condição de um ser tão indefeso, com apenas cinco anos de idade, amigo da
família, obrigado a ficar quase uma semana numa clínica veterinária, sem racionalmente
saber o que lhe acontecia.
Com humanos é diferente, as
pessoas geralmente têm consciência que
vão se submeter a uma cirurgia, são informadas sobre o problema físico ou
mental que apresentam, antes de uma internação e medicamentos. Acredito que eu
tenha sofrido como o cão, pensando que talvez o animal sentisse que fora
abandonado, longe de suas referências e de seus hábitos.
Tê-la de volta, após a cirurgia,
embora tolhida por aquela espécie de capacete que lhe impede de lamber e
arrancar os pontos, chocando-se contra todos os móveis dos aposentos, foi um transtorno
e uma alegria. A casa recuperara a vivacidade, como se um filho pródigo
houvesse a ela retornado. Mesmo em convalescença ela late para qualquer visita,
pula em todos, se agita: tudo como antes. Foram alguns dias calmos, certamente,
sem ela, e toda estrepolia que causa, mas sua presença e seu carinho compensam
todo cotidiano estresse.
Melhor ainda poder fazê-la
sentir, dizer-lhe, que aquela intervenção cirúrgica, embora agressiva, foi absolutamente necessária,
que ela tem um lar, que sentimos sua falta. E, sobretudo agradecer, à vida, por mais esta continuidade.
Qual o valor, a importância, de
nossos sentimentos para com os cães, com
os animais de estimação em geral? Num filme de Kurosawa, Madadayo, um professor
de literatura alemã aposentado, de grande sabedoria, se aflige quando um gato
sem dono, que temporariamente hospedava em sua casa, desaparece. Os ex-alunos, seus grandes admiradores, que o visitavam naquela ocasião se compadecem de sua tristeza por algo que seria tão
insignificante aos olhos de um adulto
normal, com suas lutas pela sobrevivência e contas a pagar. Eles entendem a
sensibilidade do mestre porque todas conquistas, toda ascensão e conhecimento
humanos devem convergir, mais cedo ou mais tarde, no afeto - eis nosso eixo,
nossa mola-mestra - e o universo passa a ser do tamanho de nossa afeição.
Meu cão passa bem, está se
recuperando, sob cuidados pós-operatórios. Quando o vejo choramingando, com
alguma dor residual, fecho-lhe os olhos, mansamente, e digo a ele: dorme, a
vida é um sono - sou tua crônica, és o
meu dono.
Fernando Campanella
Vídeo: Música Medieval, youtube enviado por Javer2949
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