quarta-feira, 6 de março de 2013

COLAR ELIZABETANO

Milu, após a cirurgia, com seu cone protetor.
Foto por Fernando Campanella

Milu, com três anos de idade
Foto por Fernando Campanella


Quando meu cão voltou do veterinário, trazia um aparelho enorme em torno do pescoço. Era um cone protetor, que descobri chamar-se Colar Elizabetano. Nome pomposo para o que mais parecia um abajur, cuja origem, acredita-se, remonta a um aparelho usado pela rainha Elizabete quando criança, no século XVI, para evitar que a futura monarca roesse as unhas dos pés.

Milu, meu cão fêmea, passara por uma cirurgia, após exames de sangue e ultrassonografia. Começou com diminuição de apetite e vômitos, tudo que ingeria  não parava em seu estômago. O resultado dos testes acusou a condição patológica de Piometra, uma infecção bacteriana no endométrio, tecido que reveste a parede interna do útero, conseqüência de prolongado estímulo hormonal.

Detalhes da doença e da agressiva terapia - extirpação do útero e do ovário - viriam de conversas com o médico veterinário, e de pesquisas que estendi  para conhecer mais sobre o problema do bichinho. Porém, todas essas informações acentuaram em mim uma ansiedade pela condição de um ser tão indefeso, com apenas cinco anos de idade, amigo da família, obrigado a ficar quase uma semana numa clínica veterinária, sem racionalmente saber o que lhe acontecia.

Com humanos é diferente, as pessoas geralmente têm consciência  que vão se submeter a uma cirurgia, são informadas sobre o problema físico ou mental que apresentam, antes de uma internação e medicamentos. Acredito que eu tenha sofrido como o cão, pensando que talvez o animal sentisse que fora abandonado, longe de suas referências e de seus hábitos.

Tê-la de volta, após a cirurgia, embora tolhida por aquela espécie de capacete que lhe impede de lamber e arrancar os pontos, chocando-se contra todos os móveis dos aposentos,  foi um  transtorno e uma alegria. A casa recuperara a vivacidade, como se um filho pródigo houvesse a ela retornado. Mesmo em convalescença ela late para qualquer visita, pula em todos, se agita: tudo como antes. Foram alguns dias calmos, certamente, sem ela, e toda estrepolia que causa, mas sua presença e seu carinho compensam todo cotidiano estresse.

Melhor ainda poder fazê-la sentir, dizer-lhe, que aquela intervenção cirúrgica,  embora agressiva, foi absolutamente necessária, que ela tem um lar, que sentimos sua falta. E, sobretudo agradecer,  à vida, por mais esta continuidade.

Qual o valor, a importância, de nossos  sentimentos para com os cães, com os animais de estimação em geral? Num filme de Kurosawa, Madadayo, um professor de literatura alemã aposentado, de grande sabedoria, se aflige quando um gato sem dono, que temporariamente hospedava em sua casa, desaparece. Os ex-alunos, seus grandes admiradores, que o visitavam  naquela ocasião se compadecem de sua  tristeza por algo que seria tão insignificante  aos olhos de um adulto normal, com suas lutas pela sobrevivência e contas a pagar. Eles entendem a sensibilidade do mestre porque todas conquistas, toda ascensão e conhecimento humanos devem convergir, mais cedo ou mais tarde, no afeto - eis nosso eixo, nossa mola-mestra - e o universo passa a ser do tamanho  de nossa afeição.

Meu cão passa bem, está se recuperando, sob cuidados pós-operatórios. Quando o vejo choramingando, com alguma dor residual, fecho-lhe os olhos, mansamente, e digo a ele: dorme, a vida é um sono -  sou tua crônica, és o meu  dono.

Fernando Campanella 

Vídeo: Música Medieval, youtube enviado por Javer2949