segunda-feira, 12 de setembro de 2011

CONVERSA DE COMPADRES*

Foto por Fernando Campanella


Conta-se que lá pelas bandas dos Campos do Serapião, a umas boas léguas de Despropósito, vivia um homem batizado Sebastião, esconjurado Bastião Medonho, sovina até os ossos, mestre no ofício de contar migalhas para gerar maior lucro e evitar dissipação.

Seu sítio era o que mais prosperava nas redondezas. Seus cavalos, os mais possantes, seu gado, o mais gordo, seu milharal, o mais viçoso da região.

Possuía tal indivíduo uma azenha , ou moinho d'água, onde processava o milho que plantava. A ele recorriam os sitiantes do lugar, trazendo suas safras para a barganha em farinha ou fubá. E o Medonho sempre lucrava, o que os vizinhos levavam era três vezes menos o que traziam.

Às crianças, que com seus pais ao sítio do Bastião chegavam, sempre era dada a metade de um bolinho de chuva que a esposa fritara, ou , se na hora do almoço, uma lasquinha do capado que abatera...Tudo milimetricamente calculado.


Conta-se, enfim, que o Medonho, embora com ares de "tão bãum, tão bãumzinho", era péssimo pagador. E que amealhara uma pequena fortuna , a qual esquentava o único banco de Despropósito. Acertava suas dívidas apenas quando não havia mais escape e lhe pesava a ameaça de processos na comarca.

Ora, vivia também por lá um compadre seu, o Sr. Maneco Furtado, um homem de caráter reto, pródigo, "uma candura de pessoa" , diziam. Conheciam-se os dois, o Bastião e o Maneco, desde que nasceram, por conta de laços de compadrio das famílias, os quais remontavam a várias gerações.

Certa feita, o Maneco vendera umas cabeças de gado para o compadre Bastião, sem documento assinado, na base da mais pura confiança, da amizade que unia os dois desde tenra infância. E nunca recebeu o dinheiro da transação. Também nunca cobrou: o Bastião era "cumpadi, amigo "dos bãum", um mano quase de sangue". E se não pagava era porque devia estar em má fase, como o compadre Bastião sempre lhe reclamava, chorando as pitangas, prometedendo saldar a dívida assim que "as coisa miorasse".

Após a tal compra do gado, o Bastião ficou tempos sem ver o compadre, não dando mais as caras em seu sítio.

Maneco não era mesmo um homem deste mundo. Mas de tolo nada tinha. Sabia que o sítio do compadre prosperava, mas fazia vista grossa ao fato. Colocava os valores de sentimento e de dignidade acima de todas as coisas, embora acusado de ingênuo pela esposa e familiares.

Até que num dia, fadado a acontecer, Bastião viu o Maneco em Despropósito, num armarinho, numa dessas antigas lojinhas que vendiam de tudo, de guarda-chuva a botão. Tentou disfarçar, até mesmo escapar do encontro, um mal-estar lhe gelando as veias como se houvesse enxergado um fantasma, familiar, mas um fantasma. Todavia, o bom Maneco, em sua aura de cordialidade , veio ao seu encontro, com a discreta elegância que lhe era característica, o chapéu bem limpinho, os óculos, a calça deixando entrever as botas sem meia, o embornal de compras a tiracolo.

-Salvi, cumpadi Bastião, como tem passado a famia? E ocê, irmãu, já tá melhorzinho lá no sítio? Miorô as coisa por lá?

-Vigi, cumpadi, a situação tá ruim mais tá ruim. Tô penano dimais. Muita chuva, perdi o mio tudinho, Deus tenha dó....

E Bastião continuou a ladainha, tentando causar pena no Maneco, evitando a todo custo tocar na ferida da dívida feita com o compadre. A esta, porém, o Maneco nem referência fez, apenas relembrou os tempos da infância que tiveram, quando nadavam nas enchentes do Lava- Cavalo', os bons momentos que haviam vivido em comum.

Após algum tempo, despediu-se o Maneco, exatamente como surgira, em leveza de espírito, em um quase sopro de candura, luz calma que de repente alumia, e esvaece.


-Bom sujeito esse Manequinho, meu cumpadi, disse então o Bastião ao dono da loja, o Toninho da Zefa. E arrematou, rindo meio a contragosto: Pareci até um espiritu de tão levinho...

-O senhor tá bem? - perguntou-lhe o Toninho. Tava falando sozinho... Tá passando bem?

-Tava proseanu aqui com meu cumpadi Manequinho, irmãu dus bãum...


- Ele morreu esta madrugada. O corpo tá na igreja, o enterro tá marcado pras quatro da tarde.

Corre a lenda que Bastião, após confirmar o falecimento do compadre pelo anúncio da igreja, arrepiou-se dos fios do cabelo às unhas dos pés, e que disparou da cidade como se tivesse visto o Coisa-Ruim, a Besta-de-Barba-de -Bode.

Seu sítio foi vendido, a família dali se mudou. E do safado nunca mais se ouviu falar. Se continuou medonho, não se sabe. Se morreu, ninguém sentiu.

Fernando Campanella, Março de 2009.

* O personagens do conto não têm relação nenhuma com a foto postada, a qual é mera ilustração.