Foto por Fernando Campanella |
Conta-se que lá pelas bandas dos Campos do Serapião, a umas boas léguas de Despropósito, vivia um homem batizado Sebastião, esconjurado Bastião Medonho, sovina até os ossos, mestre no ofício de contar migalhas para gerar maior lucro e evitar dissipação.
Seu sítio era o que mais prosperava nas redondezas. Seus cavalos, os mais possantes, seu gado, o mais gordo, seu milharal, o mais viçoso da região.
Possuía tal indivíduo uma azenha , ou moinho d'água, onde processava o milho que plantava. A ele recorriam os sitiantes do lugar, trazendo suas safras para a barganha em farinha ou fubá. E o Medonho sempre lucrava, o que os vizinhos levavam era três vezes menos o que traziam.
Às crianças, que com seus pais ao sítio do Bastião chegavam, sempre era dada a metade de um bolinho de chuva que a esposa fritara, ou , se na hora do almoço, uma lasquinha do capado que abatera...Tudo milimetricamente calculado.
Conta-se, enfim, que o Medonho, embora com ares de "tão bãum, tão bãumzinho", era péssimo pagador. E que amealhara uma pequena fortuna , a qual esquentava o único banco de Despropósito. Acertava suas dívidas apenas quando não havia mais escape e lhe pesava a ameaça de processos na comarca.
Ora, vivia também por lá um compadre seu, o Sr. Maneco Furtado, um homem de caráter reto, pródigo, "uma candura de pessoa" , diziam. Conheciam-se os dois, o Bastião e o Maneco, desde que nasceram, por conta de laços de compadrio das famílias, os quais remontavam a várias gerações.
Certa feita, o Maneco vendera umas cabeças de gado para o compadre Bastião, sem documento assinado, na base da mais pura confiança, da amizade que unia os dois desde tenra infância. E nunca recebeu o dinheiro da transação. Também nunca cobrou: o Bastião era "cumpadi, amigo "dos bãum", um mano quase de sangue". E se não pagava era porque devia estar em má fase, como o compadre Bastião sempre lhe reclamava, chorando as pitangas, prometedendo saldar a dívida assim que "as coisa miorasse".
Após a tal compra do gado, o Bastião ficou tempos sem ver o compadre, não dando mais as caras em seu sítio.
Maneco não era mesmo um homem deste mundo. Mas de tolo nada tinha. Sabia que o sítio do compadre prosperava, mas fazia vista grossa ao fato. Colocava os valores de sentimento e de dignidade acima de todas as coisas, embora acusado de ingênuo pela esposa e familiares.
Até que num dia, fadado a acontecer, Bastião viu o Maneco em Despropósito, num armarinho, numa dessas antigas lojinhas que vendiam de tudo, de guarda-chuva a botão. Tentou disfarçar, até mesmo escapar do encontro, um mal-estar lhe gelando as veias como se houvesse enxergado um fantasma, familiar, mas um fantasma. Todavia, o bom Maneco, em sua aura de cordialidade , veio ao seu encontro, com a discreta elegância que lhe era característica, o chapéu bem limpinho, os óculos, a calça deixando entrever as botas sem meia, o embornal de compras a tiracolo.
-Salvi, cumpadi Bastião, como tem passado a famia? E ocê, irmãu, já tá melhorzinho lá no sítio? Miorô as coisa por lá?
-Vigi, cumpadi, a situação tá ruim mais tá ruim. Tô penano dimais. Muita chuva, perdi o mio tudinho, Deus tenha dó....
E Bastião continuou a ladainha, tentando causar pena no Maneco, evitando a todo custo tocar na ferida da dívida feita com o compadre. A esta, porém, o Maneco nem referência fez, apenas relembrou os tempos da infância que tiveram, quando nadavam nas enchentes do Lava- Cavalo', os bons momentos que haviam vivido em comum.
Após algum tempo, despediu-se o Maneco, exatamente como surgira, em leveza de espírito, em um quase sopro de candura, luz calma que de repente alumia, e esvaece.
-Bom sujeito esse Manequinho, meu cumpadi, disse então o Bastião ao dono da loja, o Toninho da Zefa. E arrematou, rindo meio a contragosto: Pareci até um espiritu de tão levinho...
-O senhor tá bem? - perguntou-lhe o Toninho. Tava falando sozinho... Tá passando bem?
-Tava proseanu aqui com meu cumpadi Manequinho, irmãu dus bãum...
- Ele morreu esta madrugada. O corpo tá na igreja, o enterro tá marcado pras quatro da tarde.
Corre a lenda que Bastião, após confirmar o falecimento do compadre pelo anúncio da igreja, arrepiou-se dos fios do cabelo às unhas dos pés, e que disparou da cidade como se tivesse visto o Coisa-Ruim, a Besta-de-Barba-de -Bode.
Seu sítio foi vendido, a família dali se mudou. E do safado nunca mais se ouviu falar. Se continuou medonho, não se sabe. Se morreu, ninguém sentiu.
Fernando Campanella, Março de 2009.
* O personagens do conto não têm relação nenhuma com a foto postada, a qual é mera ilustração.
Oi, Fernando!
ResponderExcluirTenho gostado imensamente de suas amadas imagens e de seus poemas.
Abraço.
Leda
Adorei, dei boas risadas. Mas confesso que senti dó do safado do medonho.
ResponderExcluirAdorei a recordação do bolinho de chuva... parte gostosa da infância.
Fernandooooooo...
ResponderExcluirMuito divertido, assim... tão bem contado por você... hehehe... me fez lembrar vários causos
que ouvia na época de criança qdo passava férias no sítio dos meus avós maternos.
Só faltou o cigarrinho de paia q vi um dos dois
cumpadres enrolar enqto conversavam e q não me
passou despercebido. rs...
Adorei! Passou um filminho na cabeça, interessante e divertido.
Parabéns!
Bju GRANDE!
*Mari*
Boa noite, Fernando!
ResponderExcluirEstive aqui me deliciando com a sua prosa. O "cumpadi" deve estar correndo até hoje... rsrs.
Bjs.