sábado, 18 de abril de 2009

OS DIAS LINDOS E A CRÔNICA


Foto by Fernando Campanella

Estes dias de abril , rarefeitos de azul, esta luz mais difusa de outono, lembram-me Carlos Drummond de Andrade em ‘Os Dias Lindos’*, e de como seria uma temeridade escrever sobre tais dias, visto que o poeta-cronista sobre eles, tudo, tão magnificamente, no breve espaço de uma crônica descritiva, já disse.

Que maravilhas opera em nós a leitura de textos inspirados como o de Drummond. Tenho carregado comigo ao longo dos anos a impressão de uma antiga mestra de Língua Portuguesa, a de que esses curtos escritos, as crônicas, são pequenas grandes obras de arte que, com a ampla difusão da imprensa no Brasil, no século XIX, começaram a aparecer nos jornais, inicialmente como folhetins, nos moldes franceses. E que foram se adaptando, encontrando seu estilo próprio, até se constituir, segundo muitos estudiosos da literatura, em fenômeno literário tipicamente nacional.

Ou seja, a crônica dos grandes mestres deste gênero em nosso país, é um produto genuíno, tem nossa face, nosso excelente ‘jeitinho’ de fazer literatura. Os features dos jornais americanos, por exemplo, que vão além do factual, dando uma dimensão humana, atemporal, à notícia, de nossa crônica se aproximam mas ainda não têm o tom descontraído, o lirismo, ou até o humor que a caracterizam.

Estes dias lindos de abril, uma conversa no boteco, uma borboleta que do acaso cruza o tráfego pesado de uma tarde no Rio de Janeiro, uma galinha que bota um ovo, um pombo que atrasa o encontro com a namorada, um padeiro que entrega o pão de manhãzinha... Infinitos são os assuntos dessas narrativas que da vida miúda, esquecida, até ignorada, tecem um universo de enorme interesse e inusitada beleza.

Se comparada às matérias de gaveta, ou às matérias frias, de um jornal, a crônica as sobrepuja pela transfiguração e eternização do efêmero. E Embora com eventos circunscritos no tempo, pode ser lida, ou publicada, como toda boa literatura, em todas as épocas, sem subordinação a pautas, ou prazo de validade, como as reportagens e as notícias.

Seja um relato de viagens ou do cotidiano mais banal; de teor cômico ou filosófico; de costumes, da vida privada; seja poética, suave, crítica ou mordaz, a crônica é a menina dos olhos de um jornal, um bálsamo para os seus leitores fiéis. Gênero híbrido, mescla de literatura e jornalismo, nela a crueza dos fatos é temperada pelo olhar especial do autor.

A singularidade do olhar é que faculta à crônica o privilégio de escapar das páginas da mídia impressa e se eternizar em livro, constituindo-se em registro luminoso de um certo evento, de um flagrante da vida que, se apenas notícia, seria, como tudo e como tanto, para sempre perdido, uma página a mais do calendário, somente, arrancada.

Fernando Campanella, 18 de abril de 2009

* “Acontece em abril, nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins meteorológicos não se lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento. Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos. E aboliram, sem providências drásticas, o estatuto do calor...”

(Carlos Drummond de Adrade - Os dias Lindos)

BREVE HISTÓRICO DA CRÔNICA



Fernão Lopes
http://en.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Lopes



Do grego chronikós, referente a tempo (chrónos), pelo latim chronica ,o vocábulo crônica, segundo Massaud Moisés, “designava, no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos, segundo a marcha do tempo, isto é, em sequência cronológica”.

Outras fontes nos informam que em suas origens a crônica destinava-se a relatos de fatos verídicos e nobres, também em ordem cronológica. No Antigo Testamento, por exemplo, no livro das Crônicas, o que se visava era o registro da grande história do povo e dos reis de Israel. E em Portugal em 1434, Fernão Lopes, notário, guardião-mor da Torre do Tombo, foi oficialmente designado pelo infante rei D. Duarte, a escrever as crônicas dos reis anteriores e dos feitos do rei D. João I.

Nos dois exemplos acima citados, podemos constatar que esse tipo de narrativa revestia-se de uma aura de grandeza, sendo os cronistas contratados não somente pelo seu conhecimento histórico, como pela habilidade de narrar em elegante e bela linguagem as glórias do contratante e de seus antepassados.

Embora capacitados para tal empreita, dedicados à pesquisa, munidos de informação e de material arquivístico e, sobretudo, preocupados com a veracidade do que relatariam, os cronistas antigos, apaniguados pelos reis e nobres, não poderiam livrar-se completamente de um certo partidarismo, de uma visão às vezes unilateral dos fatos que relatavam. Daí resvalavam às vezes, em certas passagens de suas crônicas, para o romance histórico.

Rigor histórico à parte, foi a própria literatura a que mais se enriqueceu com as crônicas ditas ‘do reino’. Nos relatos sobre a glória de Davi, por exemplo, temos a passagem de sua oração a Deus, uma pérola espiritual e literária: “...Dignai-vos, portanto, (Senhor) abençoar a casa de vosso servo, para que ela subsista perpetuamente diante de vós; porque o que abençoais, Senhor, é para sempre bendito.” E Fernão Lopes, nas palavras de Oliveira Marques, é um dos maiores escritores de todos os tempos, por seu poder descritivo e evocativo, quando por exemplo personaliza uma cidade como Lisboa.

Já da época das grandes navegações, que diz respeito ao Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel é tida como a primeira crônica nacional. O relato da descoberta de nosso país era uma crônica no sentido atribuído ao vocábulo, ou seja, narrativa em ordem cronológica do que acontecia no Novo Mundo. Indiscutível também foi seu valor literário, “pois ele recria com engenho a arte tudo o que ele registra no contato direto com os índios e seus costumes naquele instante de confronto entre a cultura européia e a cultura primitiva”. (Jorge de Sá).

No século XIX, com a ampla difusão da imprensa, a crônica assumiu seu sentido estritamente literário. Segundo alguns estudiosos, ela apareceu inicialmente em forma de folhetim, no rodapé dos jornais da época. José de Alencar definiu o folhetim como uma miscelânea de assuntos, de artigos a ensaios ou resenhas literárias.

Dos folhetins iniciais, foi então se aclimatando na pena de grandes talentos de nossa literatura, até assumir, segundo alguns críticos literários, uma identidade própria, uma característica tipicamente nacional, componente imprescindível dos jornais.

Fernando Campanella, 18 de abril de 2009

Fontes de Consulta:

1)A Bíblia Sagrada (Antigo Testamento)

2) http://www.arqnet.pt/portal/pontosdevista/om_lopes.html

3) http://www.capuchinhos.org/biblia/index.php?title=1%C2%BA_das_Cr%C3%B3nicas

4) http://bocc.ubi.pt/pag/tuzino-yolanda-uma-interseccao.pdf


UMA CRÔNICA DE RUBEM BRAGA


Rubem Braga, 3.bp.blogspot.com

O PADEIRO

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. Enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não, senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como o pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Rubem Braga, Rio, maio, 1956.

RECONFORTANTEMENTE BELO


Foto by Fernando Campanella


Leio no jornal da família em letras garrafais: “MAU HUMOR É UMA DOENÇA.” E segue uma reportagem sobre recentes descobertas científicas relacionadas à Distimia, doença do mau humor, que atinge 3% da população do mundo.

Segundo essas descobertas, a diminuição dos níveis de um neurotransmissor no cérebro, a serotonina, seria responsável pela depressão crônica, ocorrência que leva o indivíduo a enxergar o mundo através de uma ótica insípida e monocromática. Você perguntaria a um distímico “como vai?” e a resposta seria um invariável “tudo cinza”.

Colocada em termos psiquiátricos mais precisos, longe de qualquer leiga simplificação, trata-se, essa condição, de um transtorno afetivo da personalidade. Seus portadores apresentam sintomas como tristeza, baixas energia e auto-estima, perda ou aumento exagerado de apetite, etc. Diferente da depressão, é um estado crônico e não chega a comprometer gravemente a vida profissional e social do indivíduo.

A distimia deve ter feito escola e dado ao mundo frutos notáveis como Schopenhauer e Nietzche, ou espécimes bem menos interessantes como aquele nosso vizinho carrancudo ‘que fecha o tempo’ por onde quer que passe.

Por um outro ângulo , a própria natureza deve ter suas porções ‘distímicas’, nos dias carregados do chumbo das nuvens, nas tempestades... E mesmo o universo deve ter portado essa condição, antes do ‘fiat lux’, da luz inaugural. Assim, alguns elementos distímicos, em maior ou menor grau, devem ser herança, parte constituinte da psique mais remota de todos nós.

Mas melhor não pensar em atavismos, em amarras ontológicas agora. Não em um domingo de abril como este, tão gritante de azul...Deixo então minhas elucubrações e saio para o pequeno jardim de minha casa onde passa uma pequena borboleta, bisbilhotando de flor em flor.

Lembro-me de um trabalho de pesquisa de Língua Portuguesa feito por um ex-aluno de sexta série, que dizia: “A borboleta põe seus ovos e morre. Esses ovos geram lagartas. E das repelentes lagartas surgem borboletas azuis, douradas, vermelhas, coloridas. Você pode vê-las voando silenciosamente ou pousando suavemente numa flor.” E mais adiante, “...Em geral, a vida deste inseto é mais curta que o tempo que leva para nascer...” No final da pesquisa havia o desenho de um lepidóptero estilizado, todo moderno e multicolorido , feito pelo próprio aluno.

Textos como esse da metamorfose da borboleta, em sua cristalina simplicidade, e o dom artístico, a criatividade de meu ex-aluno, reacendem- me o imenso valor e a possibilidade da alegria, ajudando-me a contornar os efeitos nocivos que uma certa distimia, ou melancolia, possa surtir em mim . Outros expedientes de que me utilizo são viagens, música, leitura, a dedicação á escrita, à fotografia, ... Ou caminhadas, em um final de tarde, para esquadrinhar o céu à espera de Vênus, ou do Cruzeiro do Sul.

Para outros, melancólicos mais crônicos, ou até distímicos, na acepção médica do termo, felizmente surgem alternativas, como psicoterapia com medicação, complementada por exercícios físicos, que podem minorar o seu mau-humor, restituindo-lhes maior satisfação e contentamento no viver.

Porém, para todos nós , distímicos ou não, melancólicos eventuais ou inveterados, ou apenas mais estressados, a subida de uma montanha, impregnados da alma de um artista, seria uma boa opção para reequilibrarmos o nível de serotonina em nossos cérebros. Ao chegarmos ao topo, veríamos que o mundo pode ser terrível, mas igualmente belo. Reconfortantemente belo.


Fernando Campanella, 17.04.1995