Fotos por Fernando Campanella |
Tão antiga a lenda da cigarra e a
formiga, atribuída ao lendário Esopo, recontada por La Fontaine em várias
traduções mundo a fora. E eu nunca vi uma cigarra ao vivo. Só escuto seu
estridular infindo que às vezes vem martelar em meus tímpanos no verão.
Das onipresentes formigas, estou
exausto: desfilam em intermináveis procissões atrás das sobras da cozinha, de
outros cômodos da casa, obrigando-me a uma quase obsessão com a limpeza, penso
duas vezes antes de tomar um café em meu quarto, em frente ao computador, no
momento em que escrevo esta crônica.
Nunca vi uma cigarra ao vivo, ou
melhor, outro dia, quase as vi, agarradas no tronco de uma árvores, inúmeras,
douradas, com seus ferrões como estiletes, assemelhando-se a escaravelhos de
ouro. Pequenos seres em estranheza e mistério, a despertar antigo pavor em mim. Douradas, secas, e mortas.
Ocas, no tronco somente suas cascas ou invólucros.
Em meu vergonhoso desconhecimento
desses bichos, imaginei-as tendo morrido, ali, subindo os troncos, devoradas
pelas implacáveis formigas, só lhes restando a carcaça. Haviam morrido de tanto
cantar, dizia-me meu lado poeta. Mas minha porção investigativa falou mais
alto, fui às enciclopédias descobrir sobre o comportamento desses mitológicos
insetos.
Ah, então as cigarras põem seus
ovos em troncos de árvores, os quais eclodem em ninfas que descem ao subsolo,
ali vivendo, na escuridão, por anos. Depois, ainda ninfas, retornam ao ar,
subindo pelos troncos, e se desfazem dos exoesqueletos, tornando-se adultas, em um processo denominado “ecdise”,
ou “muda”.
As cigarras que observei haviam me enganado. Não estavam mortas, nem secas. O que eu presenciara
foram suas “casacas”, seus invólucros dourados.
Lá em cima, nos galhos das árvores, agora me lembro, as danadinhas, ou
melhor, os danadinhos, estridulavam para atrair as fêmeas.
Melhor ter como respaldo a
ciência que desfaz superstições, lança certa luz sobre os mistérios e ciclos
vitais da natureza. E é a ciência, também, que, ao meu entendimento, mais
enobrece as cigarras, seres que das masmorras, da escuridão, de anos, anseiam
pela luz, sofrem metamorfoses, e, na fase final, de breves dias, cantam,
cantam, para a glória final da perpetuação de sua espécie, do amor. Na
realidade, um canto ensurdecedor a longo prazo, proveniente de seus tímbalos com
potentes decibéis.
É fato, também, que, ao contrário
da fábula, esses insetos, na longa fase de ninfas, buscam incansavelmente por
raízes para sua subsistência, jamais recorrendo às formigas, na penúria
invernal, à procura de alimento E que estas, as formiguinhas, coitadas, cegamente farejam alguma comida para levar à chefona, uma espécie de eminência parda, a rainha reprodutora,
sempre oculta no formigueiro. Transportam, das cigarras, as carcaças, mas
parecem ser duras, surdas a qualquer acontecimento que possa desviá-las da rota
da subsistência.
Talvez por isso, pela abordagem
das necessidades eternas do homem, de pão e arte, a fábula de Esopo ainda seja
tão pertinente, atual. Outro dia vi um
vídeo pelo Youtube, Le chant des cigales
(O canto das cigarras), estória de Thomas Szabo, que mostrava formigas
carregando alimentos, dia após dia, com o fundo musical desse canto. As
trabalhadeiras pareciam alheias a tudo, devotamente concentradas no trabalho,
como os escravos egípcios à sombra do faraó. Cena após cena, no vídeo, o mesmo quadro
enfadonho, e o canto daqueles insetos solto no ar. Apenas uma dessas
formiguinhas sempre se detinha por um instante para ouvir, alcançando depois o
bando. No final dessa fábula visual, ela junta-se à trupe das cigarras, passando
a assoviar em harmonioso concerto com elas. Maravilhosa releitura da antiga fábula, onde a
formiga liberta-se do sistema coletivo, opressor, e percebe-se indivíduo, sob a
égide, a leveza da arte.
Fernando Campanella
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