quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

CARTAS AO EU (II)


Foto por Fernando Campanella

Caro eu,


Às vezes te chamo no meio de uma tarde, naquela segunda-feira fria, filha do outono, quase inverno, quando nuvens se carregam de uma antiga opressão, e certa melancolia, vinda do nada, que é tua, ameaça romper-te, extravasar as bordas de tua contenção . Mais tarde – dizes a mim - agora não posso, “tenho promessas a cumprir, e milhas a percorrer, antes de dormir”, como naqueles versos de Frost. E segues o rumo de tuas rotinas , tuas pequenas, intoleráveis burocracias. Tampas os ouvidos, cumpres agendas, marcas consultas na eterna e comprometedora roda dentada do dia.

E te sentes quase realizado nesta ilusão doce , no ato de ser alguém responsável no mundo. É quando entre os ruídos, no fundo amorfo da tarde, um pássaro insiste em teu quintal, um pio, uma sincronia, canto brotado da tua tristeza amarelecida em algum subnível de tuas emoções.

Seria um ninho em algum beiral, em algum vão de um muro? Estranha presença no meio do dia, nem sabes o nome de quem assim canta... Um falso bem-te-vi, talvez? Uma gralha?

O pássaro seria eu mesmo vindo de nenhures. Se soubesses onde eu me escondo, poderias arriscar uma fotografia, captar minha imagem sem acontecimentos, mas não importa, sabes que sou teu pássaro, e que meus sons desenham-se em teu espelho. Então uma luz, tênue a princípio, vai se encorpando, toma o marrom dos telhados que avistas da tua janela, abre a tua paisagem. Coisas remotas, sem armações, irrompem (eu- pássaro a te instigar) arrancando-te certas cruas belezas de dentro, até te confundires comigo, e é a ti que agoras escutas, tua voz, teu todo articulado, poéticas alucinações que te embalam. Te entregas, e descobres meu ninho lá no fundo de tua nostalgia, meus pios trêmulos bicando, a penugem em azul, asas em filigranas iluminadas...

As agendas que se esqueçam, meu caro eu, este ninho alquímico é como forno brando que te aquece a alma, e te arma o vôo, algo essência, um chamado. Tu em mim.

Fernando Campanella




quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

VITRAIS

Foto por Fernando Campanella


Por que escrevo?
Por que em minhas mãos
a luz retenho
só para estendê-la -
mil asas ofegantes
sondando os céus
sem beirais -
e o universo se põe luzente

e uma capela
reflete então
meu coração
em seus vitrais...

Fernando Campanella

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

BIGODINHOS E GPS

Fotos por Fenando Campanella

Os bigodinhos (Sporophila lineola), também conhecidos como estrelinhas, cigarrinhas, papa-capins, estão de volta à minha rua para um novo ciclo de procriação, as fêmas botando seus ovos e chocando em seus ninhos. Nesses dias de chuva constante, vi novamente a mãe acalentando os ovos, naquela mesma jabuticabeira ainda pequena, em frente à casa de meu vizinho.

Esses pássaros migratórios chegam em novembro e ficam até março, abril, ocasião em que fogem de nossa estação mais fria, rumo ao norte e nordeste do país.

O que me encanta em relação a eles, e às aves migratórias em geral, é o sofisticado GPS que possuem, sem o esforço de cálculos milenares ou da tecnologia. Em outras palavras, em novembro, após longa viagem, vindos de regiões mais próximas ao equador, meus bigodinhos conseguem chegar à mesma cidade, à mesma rua, por sorte a minha. E, surpreendentemente, constroem o ninho na mesma árvore, a jabuticabeira do meu bom vizinho.

Seria o mesmo casal do ano anterior, ou um dos filhotes daquela ninhada, já adulto, pai ou mãe, delimitando ali seu território? A  fêmea poderia ser submetida a um procedimento de anilhagem, pensei, colocando-se um pequeno anel com dados de identificação em seu tarso, para solucionar minha curiosidade e até mesmo contribuir com as pesquisas de padrões migratórios desses pássaros, mas eu teria que recorrer a um biólogo credenciado para tal. Melhor deixar a mãe zelosa cuidando de seus afazeres, sem maior perturbação para a família além de minha fotografia.  

Ah, que espetáculo o do sistema de todo instinto, do mundo natural, a tão complexa ciência humana sempre aprendendo com ele. E que vontade de trazer comigo um dispostivo semelhante, um GPS anímico, orientador dos meus labirintos em direção ao calor de um aconchego  pleno, absoluto, como o da morada daqueles infantes bigodinhos.   

As três fotos acima foram tiradas no ano passado.Na primeira imagem postada, vemos a mãe, de cor parda, próxima aos rebentos. Na segunda, aparecem os filhotes abrindo os bicos à espera do alimento. E na imagem mais abaixo, o macho, de melhor identificação,  com áreas brancas, em contraste com negras, no corpo, vigia o ninho. Um detalhe interessante: essas fotos com os bigodinhos adultos e recém-natos foram tiradas no início de fevereiro de 2012. Neste meado de janeiro de 2013,  passando pela jabuticabeira, vejo a mãe, tão parecida com a do ano anterior, com a mesma carinha brava, ainda chocando seus ovos.


Fernando Campanella





Vídeo de Anderson Capobianco com imagens e canto dos bigodinhos:

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

OU TE DEVORO


Foto por Fernando Campanella
A lua é um criptograma.
Decifra-me, diz ela
à minha porção analítica
e trôpega.

À minha outra metade,
mais precavida
ante o mistério das coisas,
ela sussurra apenas:
bebe de meu halo e sonha.

Fernando Campanella