Foto por Fernando Campanella |
Caro eu,
Às vezes te chamo no meio de uma tarde, naquela segunda-feira fria, filha do outono, quase inverno, quando nuvens se carregam de uma antiga opressão, e certa melancolia, vinda do nada, que é tua, ameaça romper-te, extravasar as bordas de tua contenção . Mais tarde – dizes a mim - agora não posso, “tenho promessas a cumprir, e milhas a percorrer, antes de dormir”, como naqueles versos de Frost. E segues o rumo de tuas rotinas , tuas pequenas, intoleráveis burocracias. Tampas os ouvidos, cumpres agendas, marcas consultas na eterna e comprometedora roda dentada do dia.
E te sentes quase realizado nesta ilusão doce , no ato de ser alguém responsável no mundo. É quando entre os ruídos, no fundo amorfo da tarde, um pássaro insiste em teu quintal, um pio, uma sincronia, canto brotado da tua tristeza amarelecida em algum subnível de tuas emoções.
Seria um ninho em algum beiral, em algum vão de um muro? Estranha presença no meio do dia, nem sabes o nome de quem assim canta... Um falso bem-te-vi, talvez? Uma gralha?
O pássaro seria eu mesmo vindo de nenhures. Se soubesses onde eu me escondo, poderias arriscar uma fotografia, captar minha imagem sem acontecimentos, mas não importa, sabes que sou teu pássaro, e que meus sons desenham-se em teu espelho. Então uma luz, tênue a princípio, vai se encorpando, toma o marrom dos telhados que avistas da tua janela, abre a tua paisagem. Coisas remotas, sem armações, irrompem (eu- pássaro a te instigar) arrancando-te certas cruas belezas de dentro, até te confundires comigo, e é a ti que agoras escutas, tua voz, teu todo articulado, poéticas alucinações que te embalam. Te entregas, e descobres meu ninho lá no fundo de tua nostalgia, meus pios trêmulos bicando, a penugem em azul, asas em filigranas iluminadas...
As agendas que se esqueçam, meu caro eu, este ninho alquímico é como forno brando que te aquece a alma, e te arma o vôo, algo essência, um chamado. Tu em mim.
Fernando Campanella
Belíssimo texto/poema, que maravilha, aprecio demais teus escritos, querido amigo do coração.
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