Quis conhecer o mundo, pôs o chapéu, montou no cavalo, mas antes de partir olhou para trás.
Minas, na frágil, terna caduquice dos anos, pelos mandos e desmandos de suas rabugens, cuspiu em seu chão três vezes, em círculo, dizendo: antes que isto seque, ocê volta.
A poesia me leva a nomes de teus reinos dispersos por tuas veredas e encostas, em tuas grotas e ravinas retomo o barro de que um dia me geraste - e me reamasso.
Sempre que ia à casa de uma tia, eu observava aquela pintura de paisagem em madeira, de formato oval, na parede da sala. Era uma peça que pertencera à minha bisavó, pois me lembro dela desde minha infância.
Com olhos de uma certa pretensão estética, eu criticava aquela obra, classificando-a como artisticamente pobre, primária, acadêmica. Mas no fundo, no secreto inconfessável, eu me permitia gostar daquela simplicidade, e até a achava bonita.
Minha tia, aquele lar, aquela pintura na sala, assim como tantas outras cenas e afetos de minha vida, passaram, são ecos da memória.
No mundo da criação artística, onde tantos são chamados e pouquíssimos os reconhecidos, o autor daquela singela peça de madeira não chegou às alturas, à genialidade de um Van gogh, de um Picasso... E talvez nem se preocupasse com isso. Em alguns momentos de sua trajetória no mundo, grafou a beleza de uma paisagem, com tinta, na madeira. Passou, também, incógnito, como aves e rios, mas revelou-se inteiro no que plasmou. E me faz sentir que a necessidade da arte, em toda e qualquer manifestação, consegue ser ainda mais tocante que a própria arte.
E lembrando Drummond, essa existência nossa, entremeada de estresses e afetos, assim como Minas, vai se tornando um esmaecido retrato da memória, como aquela pintura. E se dói, que também enterneça.
Fernando Campanella
* A imagem, postada acima, não é foto de um pintura, mas de uma paisagem real, na área rural de São José do Alegre, município perto de minha cidade.
A súbita visão daquele redemoinho de centenas, talvez milhares, de aves no céu, no final da tarde, foi algo que beirou o numinoso. Elas passavam em voo baixo, em gigantescos bandos, frenéticas, e retornavam com a mesma intensidade, causando-me uma sensação de elemento estranho, ali, como se eu estivesse profanando um templo.
O ruflar das asas, a aproximação da noite e a percepção de minha solidão inteira dentro daquela vibração selvagem avivaram em mim um remoto mistério, com tintas de pavor, a princípio. Pude vislumbrar, porém, a maravilha de um reino maior, que desencadeia as forças da criação, que a nossa história, e a nossos enredos, subjaz. (Fernando Campanella)
"Aceite tudo a respeito de si próprio - quero dizer - tudo. Você é você e isso é o princípio e o final - sem pedidos de desculpa, sem arrependimentos." (Clark Moustaka, tradução de Fernando Campanella)
...o coração entre o lume brando e a usura, esfumando sem desprender a ternura.
(Fernando Campanella)
Dona Adélia estava sempre à janela quando eu passava em minhas caminhadas por aquela rua.
Todas as manhãs assistia missas pela televisão em sua sala, deixando um copo com água para "bentar", como dizia. Uma vez tomei dessa água. Numa de nossas conversas, disse-me que o marido vestira o 'paletó de madeira' já há muito tempo e que vivia praticamente sozinha, tendo apenas visitas diárias de alguns parentes, e de um garoto vizinho que se afeiçoara a ela como a uma legítima avó. No quintal de sua casinha havia árvores com orquídeas e bromélias, e canteiros com hortelã, rosas, manjericão... Isso foi tudo que consegui saber nas poucas vezes em que nos encontramos. O que mais importa, para minha alegria, é que tenha me deixado tirar algumas fotos suas, em sua rica presença naquela humilde janela. E que também tenha me inspirado um poema, cujo trecho abre esta postagem. Há alguns dias vim a saber que falecera. Vestiu seu 'casaquinho de madeira' definitivo para reencontrar o marido. Por sorte eu havia levado a ela uma das fotos de presente alguns meses antes, ocasião em que, ansioso por agradá-la, perguntei se tinha gostado do retrato. E foi com um sorriso meio a contragosto que me respondeu: gente velha não sai bem em fotografia, meu filho. Ainda não passei por lá após sua partida. Reluto em ver sua janela fechada, vazia.