"Mais do que ningém posso de minha sorte reclamar e, ao mesmo tempo, com ela me alegrar..." (Guillaume de Machaut, compositor e poeta francês do século XIV)
Desenho a melancolia numa folha de papel. Que minha dama, de longa data e tediosa face, pudesse, transposta de mim, tão graciosa sagrar-se, eu não sabia. Fernando Campanella
em suas planuras e montes. Seguia, alegre, as curvas, as margens de corredeiras e rios, acatava em silêncio o clamor dos trovões - minha seiva corria equânime sob o esplendor dos elementos ou as gasturas invernais. Preparei longa e arduamente a casa, alimento e berço, a morada, para as futuras criações em asas.
As tardes de outono propiciam crepúsculos inigualáveis. Embora os atores - nosso velho, vaidoso sol, as frívolas nuvens, o ar, o imponderável vento... – sejam sempre os mesmos em outros períodos do ano, é nesses dias que precedem o inverno que os espetáculos do fim da tarde rendem maior vibração em luz, forma, tom e cor.
Os crepúsculos outonais lembram algo como o capricho de um demiurgo a brincar com infinitas possibilidades na reorganização de toda matéria preexistente. Uma arte de tamanha grandeza, de tão poderoso efeito, onde o criador, o sujeito, se esquece e passa a ser objeto da própria criação.
Assim, em escala menor, com todos artistas que, movidos por um impulso interno, reestruturam o que vivem, o que recebem, neste insondável processo atópico, acrônico, que denominamos "criar".
Assim, com a poeta Emily Dickinson que, tocada pelos crepúsculos de Amherst, reestruturou as impressões, as emoções internas, rendendo este maravilhoso universo-poema:
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Ela varre com vassouras multicores E sai espalhando fiapos, Ó Dona arrumadeira do crepúsculo, Volta atrás e espana os lagos:
Deixaste cair novelo de púrpura, E acolá um fio de âmbar, Agora, vejam, alastras todo o leste Com estes trapos de esmeralda!
Inda a brandir vassouras coloridas, Inda a esvoaçar aventais, Até que as piaçabas viram estrelas — E eu me vou, não olho mais. Tradução: Aíla de Oliveira Gomes
Hoje de manhã, na fila da padaria, algumas mulheres comentavam sobre simpatias feitas a Santo Antônio para arranjarem marido ou namorado.
- Já enterrei a imagem do santo de cabeça pra baixo, num poço, e nada ainda – dizia uma.
- Eu até roubei a imagem do menino Jesus que estava nos braços dele, só vou devolver quando aparecer um marido – dizia outra.
Uma terceira senhora entrou na conversa, rindo aos montes, dizendo que não queria saber da casamento mais não, melhor ficar sozinha. O primeiro marido fazia todas suas vontades, só faltava estender o tapete por onde ela passava, mas falecera poucos anos após se casarem. O segundo, e último, estendia o tapete, sim, mas para pisar nela, espicaçá-la, atormentá-la. Não aguentou o tranco e o despachou o mais rápido possível.
Um homem de meia-idade juntou-se à conversa, dizendo que a pessoa certa para a gente pode estar ao nosso lado e não percebemos, não precisamos procurar tanto. Mas acrescentou, jocosamente: eu queria mesmo era casar com a Gisele Bündchen.
Foi uma gargalhada geral, até o atendente da padaria fez um comentário, dizendo que não dispensava tal modelo como namorada. Era tudo descontração, para esquecer o tempo na longa fila, eu sabia, mas não deixei de pensar que temos que ter cuidado com nossos sonhos e desejos, desenvolver a arte de saber o que realmente nos importa e nos faz felizes.
De qualquer forma, o velho, bom Antônio, do meu aniversário, da minha infância, do Itaim, das festas do bairro das Cruzes, ainda está em pauta nos corações, nas conversas, fazendo jus à reputação de santo casamenteiro.
Após apanhar meu pão, saio de lá com a certeza de que tenho mais fé na fé, em si, poderosa, formada pela corrente de almas que há séculos vêm mentalizando preces para o alívio da dor, em busca da felicidade tantas vezes abortada nas durezas da vida.
Por outro lado, confesso que trago a medalhinha do meu santo numa corrente no pescoço. Em momentos difíceis, esqueço as racionalizações, peço a ele que me ampare, e consigo, ou, mais importante, acredito que consigo, o que peço.
Mas hoje, no meu aniversário, quero apenas agradecer pelas tantas coisas boas que a vida tem me outorgado - amor, amizade, arte, alegrias... E se eu pedir algo, será, certamente, para que seja dada saúde à minha família, eu incluído, e aos meus amigos. E que minhas bênçãos sejam preservadas. Fernando Campanella (Foto tirada hoje, na estrada que liga Borda da Mata a Ouro Fino, sul de MG)
"...Não tenha rancor de mim por causa dessa pequena terra que cobre meu corpo." (Final de suposta inscrição na tumba de Ciro, o Grande, rei da antiga Pérsia, em Pasárgada) Quando eu me sentir triste, triste de doer, da dor barroca, ou imemorial, inominável, sem fundo, sem alças, triste das coisas cridas, dos impérios que inventei ou do que nem senti nascer - triste da palavra em mortal ferida - serás meu fiel retorno, capelinha das urzes, à beira da estrada, meu cavalo sem peias, minha jornada de ossos - minha Ítaca, minha Pasárgada.