sábado, 28 de março de 2009

MIMUS


Sabiá do Campo, foto by Fernando Campanella


Segundo dia de um congresso sobre Educação , os workshops da manhã martelando o tema ‘O papel do professor no negócio-ensino’. Finca-se no ar e no subconsciente dos participantes, uma idéia tão cara ao neo-liberalismo, a de que são os mais competitivos de nossa espécie os que sobrevivem.

Corro os olhos pelos palestrantes, pela sala de conferências do hotel, pelos assistentes do evento em seus sorrisos profissionais e suas embalagens impecáveis. Dou uma sacudidela na mente para me distrair da impressão aterradora de que tudo, educação, saúde, música , gentilezas, vai se transformando em business e marketing.

Duas horas para almoço, preciso me afastar daquela atmosfera e saio a percorrer as ruas da pequena cidade turística.

A pracinha central sob um céu retinto de azul, ao sol brando de inverno, me seduz com a arquitetura delicada de seus gramados, seus ciprestes esculpidos em forma de aves enormes , uma agradável descoberta para mim.

E lá estavam, e cantavam, seus freqüentadores mais assíduos, seus pássaros. Alguns voavam de arbusto em arbusto, outros atingiam às vezes o topo de um pinheiro mais alto, demorando-se lá em cima por longos minutos. Durante esse tempo, que me pareceu infinito, as nuvens cobriam momentaneamente o sol , depois se abriam, as árvores agora carregadas de luz, lembrando uma decoração temporã de natal. E os pássaros nos cimos , como apêndices, a meditar ao céu.

Àquela altura, eu já havia esquecido o almoço, e a própria areia movediça dos intrincados negócios onde todos nos enfiamos. Tiro várias fotos , mas sempre dos mesmos personagens: rolinhas, joões de barro, pardais. Porém, a espécie em maior número, e de maior rebuliço , na praça, era desconhecida por mim.

Confesso minha condição de ignorante turista a um vendedor de pipocas, e pergunto-lhe o nome daquela maravilha em tons de marrom, peito e sobrancelhas brancos, cauda alongada, semelhante aos sabiás em forma e cor, mas de diferente canto. Sabiá-do-campo – diz-me o homem, um tanto incrédulo com meu desconhecimento de algo tão banal. Ou galo-do-campo – acrescenta, nome dado à ave na região rural onde fora criado.

Agradeci, e pensei com meus botões se aquela espécie não haveria sofrido mutações em sua trajetória: de galo-do-campo, passando por sabiá-do-campo, chegando agora a sabiá-da-praça com suas ensaiadas poses para fotos de turistas, em seus negócios de pipocas como alimento garantido em troca da exposição. Mas pássaros ainda são pássaros, alimentam-se de bichinhos e sementes, não têm negócios com os homens. E, sobretudo, ainda cantam para Deus , como dizem os chineses, nos jardins pródigos, de graça.

Volto ao hotel para mais uma rodada de palestras na tarde, mas agora menos comprometido , mais leve: outras sintonias havia , outros encantos ainda não conspurcados.

Findo o congresso, vou pesquisar sobre aquela variedade de sabiá em um site científico e constato a veracidade da informação obtida . O ‘Mimus Saturninus’, ou popularmente ‘Sabiá-do-Campo’, é uma ave dócil que pode se adaptar às grandes cidades. É bastante comum nas cidades do interior de São Paulo, e de Minas, pelo que eu pude observar. Vista sempre em pequenos bandos de três a sete indivíduos, imita sem maestria o canto de outros pássaros, daí a origem do nome ‘Mimus’, imitador, em latim. De vez em quando abre-se em exibição denominada ‘lampejo de asas’, atitude ainda não satisfatoriamente esclarecida pelos ornitólogos.

Quando transfiro as fotos para o computador, alguns dias depois, a mais tocante, para minha surpresa, é justamente a de um Mimus no fio de luz de um poste, mirando algum ponto indefinido no céu.

Bate em mim, então, uma irreprimível saudade, uma falta, como se de um amigão distante, ou de algo em mim, alguma alegria há muito tempo vivida. Confesso, que sob o peso de minhas couraças, deixei escapar alguma lágrima, assim meio camuflada. Mas tenho que voltar aos meus negócios.



Fernando Campanella, 01 de Julho de 2007



1)Ouça o canto deste pássaro:
http://br.geocities.com/arieref/sabia_campo.html






4 comentários:

  1. Mimus retrata uma linda realidade, uma fuga das loucuras do dia a dia, para um apreciar das coisas belas e leves que a vida pode oferecer! Vc transmite uma enorme serenidade e luz com esse escrito, os vídeos postados, estão maravilhosos! Parabéns, lindo escrito!!

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  2. Muito obrigado, meu amigo. Mimus é daquelas crônicas que têm profunda significação para mim, fruto de um momento inigualável, iluminado. Escrevi a crônica, depois fui atrás da foto. E acredito que ilustração tenha ficado bastante bonita. Os vídeos não são meus, mas também se casam perfeitamente com o propósito da postagem. Muito obrigado pela visita, apareça sempre. Grande abraço.

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  3. Mimus está um mimo.
    Parabens, menino!

    *Mari*

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  4. Obrigado, Mari, tenho um carinho especial por esta crônica. Bjos.

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