sexta-feira, 26 de abril de 2013

CURANDEIRA



Três vezes Minas me perguntava:
que mal eu corto? – Ferida –
a cada vez eu respondia.
Ela completava o círculo: ferida eu corto.
Às vezes uma lembrança de carqueja
me amarga a língua
e um resquício de mato chimango
me chama de onde vim.
- É cedo, a alma ainda supura.

Bordo cruzes e mantras
em torno à outra dor, que não seca,
a ausência que jamais supri.

Fernando Campanella

(Foto abaixo: Flor mato chimango, por Gilberto Palma, do Flickr:






Flor mato chimango

quinta-feira, 18 de abril de 2013

CONHECIMENTO DAS CIGARRAS


Fotos por Fernando Campanella


Tão antiga a lenda da cigarra e a formiga, atribuída ao lendário Esopo, recontada por La Fontaine em várias traduções mundo a fora. E eu nunca vi uma cigarra ao vivo. Só escuto seu estridular infindo que às vezes vem martelar em meus tímpanos no verão.

Das onipresentes formigas, estou exausto: desfilam em intermináveis procissões atrás das sobras da cozinha, de outros cômodos da casa, obrigando-me a uma quase obsessão com a limpeza, penso duas vezes antes de tomar um café em meu quarto, em frente ao computador, no momento em que escrevo esta crônica.   

Nunca vi uma cigarra ao vivo, ou melhor, outro dia, quase as vi, agarradas no tronco de uma árvores, inúmeras, douradas, com seus ferrões como estiletes, assemelhando-se a escaravelhos de ouro. Pequenos seres em estranheza e mistério, a despertar antigo  pavor em mim. Douradas, secas, e mortas. Ocas, no tronco somente suas cascas ou invólucros.

Em meu vergonhoso desconhecimento desses bichos, imaginei-as tendo morrido, ali, subindo os troncos, devoradas pelas implacáveis formigas, só lhes restando a carcaça. Haviam morrido de tanto cantar, dizia-me meu lado poeta. Mas minha porção investigativa falou mais alto, fui às enciclopédias descobrir sobre o comportamento desses mitológicos insetos.

Ah, então as cigarras põem seus ovos em troncos de árvores, os quais eclodem em ninfas que descem ao subsolo, ali vivendo, na escuridão, por anos. Depois, ainda ninfas, retornam ao ar, subindo pelos troncos, e se desfazem dos exoesqueletos, tornando-se  adultas, em um processo denominado “ecdise”, ou “muda”.

As cigarras que observei haviam me enganado. Não estavam mortas, nem secas. O que eu presenciara foram suas “casacas”, seus invólucros dourados.  Lá em cima, nos galhos das árvores, agora me lembro, as danadinhas, ou melhor, os danadinhos, estridulavam para atrair as fêmeas.

Melhor ter como respaldo a ciência que desfaz superstições, lança certa luz sobre os mistérios e ciclos vitais da natureza. E é a ciência, também, que, ao meu entendimento, mais enobrece as cigarras, seres que das masmorras, da escuridão, de anos, anseiam pela luz, sofrem metamorfoses, e, na fase final, de breves dias, cantam, cantam, para a glória final da perpetuação de sua espécie, do amor. Na realidade, um canto ensurdecedor a longo prazo, proveniente de seus tímbalos  com  potentes decibéis.

É fato, também, que, ao contrário da fábula, esses insetos, na longa fase de ninfas, buscam incansavelmente por raízes para sua subsistência, jamais recorrendo às formigas, na penúria invernal, à procura de alimento E que estas, as formiguinhas,  coitadas, cegamente farejam alguma comida para levar à chefona, uma espécie de eminência parda, a rainha reprodutora, sempre oculta no formigueiro. Transportam, das cigarras, as carcaças, mas parecem ser duras, surdas a qualquer acontecimento que possa desviá-las da rota da subsistência. 

Talvez por isso, pela abordagem das necessidades eternas do homem, de pão e arte, a fábula de Esopo ainda seja tão pertinente, atual.  Outro dia vi um vídeo pelo Youtube, Le chant des cigales (O canto das cigarras), estória de Thomas Szabo, que mostrava formigas carregando alimentos, dia após dia, com o fundo musical desse canto. As trabalhadeiras pareciam alheias a tudo, devotamente concentradas no trabalho, como os escravos egípcios à sombra do faraó.  Cena após cena, no vídeo, o mesmo quadro enfadonho, e o canto daqueles insetos solto no ar. Apenas uma dessas formiguinhas sempre se detinha por um instante para ouvir, alcançando depois o bando. No final dessa fábula visual, ela junta-se à trupe das cigarras, passando a assoviar em harmonioso concerto com elas.  Maravilhosa releitura da antiga fábula, onde a formiga liberta-se do sistema coletivo, opressor, e percebe-se indivíduo, sob a égide, a leveza da arte.

Fernando Campanella      


terça-feira, 9 de abril de 2013

ANTÍQUA

Fotos por Fernando Campanella


Ali, entre os juncais,
a face de um deus esquecido
reverberava na tarde.
- Tua alma é antiga, junta-te a nós -
chamavam me os juncos, e tremiam
ao meu silêncio - um vento
que eriçava a memória da água.

Fernando Campanella

 

quarta-feira, 3 de abril de 2013

ELO ENCONTRADO

Foto original de Jane Nahabedian do cartão postal que recebi,
fotografado e editado por mim. *



“Não caminhe atrás de mim, eu posso não liderar. Não caminhe na minha frente, eu posso não seguir. Simplesmente caminhe ao meu lado e seja meu amigo.”
(Albert Camus)

Às vezes me quedo em certo alheamento do mundo, espécie de mínima entropia, não com um sentimento de tristeza que nos torna amargos e fechados ao novo. Um recolhimento vago, necessário, até saudável, quando apenas a memória afetiva me fala. 

Retiro, então, da gaveta, antigos cartões postais (tenho o hábito de guardá-los) e neles reencontro as palavras, o carinho, de amigos distantes que em algum momento de suas vidas, não importa quão longe estivessem, lembraram-se de mim, e me escreveram. E atingiram meu coração com suave flecha iluminada.

Tenho agora em mãos, e na memória mais grata, dois desses cartões, os quais em momentos solitários de minha vida chegaram-me de amigos que se encontravam em outros países e lembraram-se de mim.

Num deles, de um grande amigo estilista, destaco o trecho: “... o frio é intenso, e a chuva constante atrapalha minhas andanças. Ontem fiquei um tempão parado na Champs Elysées, abrigado da chuva. Mas o que poderia tornar-se um inconveniente, transformou-se em pura magia com as folhas que caíam em movimentos espirados, a água nas largas calçadas refletindo as luzes de decoração natalina, o vai-e-vem das pessoas em seus modelões variados, uma babel de cores e raças, e me peguei refletindo sobre muitas coisas. E agradeci a Deus por tudo que tem me proporcionado, e entre tantos agradecimentos um dos mais importantes foi ele ter colocado você na minha vida. Acho que nunca te falei, mas eu te amo com o mais sincero amor de um amigo...”

Outro cartão, de uma querida ex-professora de literatura inglesa, em alguns trechos dizia: “... E o tempo passou, não respondi sua carta, mas não esqueci; pensei em você, e em mandar-lhe este cartão, a semana inteira... Veja o muro, ou cerca de pedra, de que Robert Frost fala em seu poema Mending Wall na foto deste cartão que te envio...” A minha amiga não sabia que o Mending Wall era um de meus poemas favoritos do Frost.

Esses dois amigos já não mais no mundo se encontram. Mas sejam eles, os que já foram, ou os ainda presentes, na convivência física, os virtuais, trazidos pelos novos meios de comunicação, os poetas que lemos, ou até mesmo bichos e árvores, amigos transcendem as horas. São filamentos, extensões de anjos que abraçam a terra de polo a polo,  por cuja mediação e presença “nossos ombros suportam o mundo” - o elo” achado” na escala da evolução.

Fernando Campanella

Observação: a foto acima foi tirada por mim do cartão (foto original de Jane Nahabedian), que recebi de minha amiga, ex-professora de literatura inglesa, em 1996 quando ela visitou Connecticut. Coloquei o foco nos muros de pedra (stonewalls), aos quais Robert Frost faz referência em seu belíssimo poema "Reparando o muro" (Mending Wall)

Vídeo: segundo movimento da Sinfonia do Novo Mundo, por Dvorak, enviado pela DublinPhilarmonic: