sexta-feira, 16 de maio de 2014

O PAI



O pai me chamou na sala e perguntou: cadê tua mãe? 

A mãe? - perguntei, em resposta, com incredulidade e espanto, pois já haviam se passado quase doze anos desde o falecimento dela.

Outro dia eu pensara em como os neurônios castigam, amargam a longevidade, pela própria perda deles, ou outros fatores, mas hoje, diante da pergunta de meu pai, na dureza e glória de seus 93 anos,  consegui perceber um veio de ternura em sua voz. Momento de solo absoluto, em que o touro, frágil, torna-se ave, e a memória faz seu ninho. Indagar por alguém que já partira há tantos anos, como se a presença física da pessoa amada, com quem convivera por bem mais de meio século, ainda rondasse os aposentos da casa, e sua voz se fizesse ouvir da varanda, da cozinha, é algo, no mínimo, resplandecente, rompendo os grilhões de ferrugem, a tirania dos hábitos, dos medos que a solidão procria.

- A mãe? Ela está parte no céu, parte aqui conosco - acrescentei - reze por ela.

No final de nosso diálogo, meu pai, em tocante desamparo, disse-me que estava perdendo a memória. Arrematou que orava pela esposa diariamente. E não estava sendo demagogo, não estava mentindo: várias noites antes de ele se deitar, sem que me visse, eu o observara fazer o sinal da cruz diante  do antigo porta retrato em seu quarto. Então tomava-o nas mãos, beijava a imagem dela, dizendo baixinho: minha eterna companheira.

Os seres, embora imbuídos em categorias e espécies, desde as casas que habitamos, as árvores, as flores, os animais de estimação, até os nossos entes queridos, são únicos, insubstituíveis, mas passei a mão no cabelo branco de meu pai como para dizer: eu estou aqui, mesmo com toda ausência, toda falta que o senhor possa sofrer. E  o senti mais leve, pois de alguma maneira eu intuía que a mãe estava ali entre nós.

Fernando Campanella 





8 comentários:

  1. O seu texto me comoveu até às lágrimas, meu querido amigo. Bem haja por partilhá-lo aqui.
    Um beijo.

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  2. Que linda mensagem de amor, meu prezado amigo Fernando. Eu acredito tanto neste amor, num casamento assim....que a morte separa o corpo, porém, jamais pode separar a alma. E essa presença compartilhada... "beijando a imagem dela, dizendo baixinho: minha eterna companheira" .. isso tocou fundo no coração. Obrigado pela linda mensagem, meu grande amigo e poeta do coração.

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  3. Que lindo, Fernando!
    As pessoas se vão, mas o amor permanece.

    Grande abraço.

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  4. Senhor Fernando,cheguei até este blog por uma foto do senhor que vi na fã page no Facebook Por ai Lugares, coisas, causos e pessoas de Minas Gerais.Então fui procurar para ver se o senhor tinha mais fotos de Minas,terra que amo imensamente.Com os resultados cheguei até o seu Facebook e de lá parei aqui nesse texto.Não consigo exepressar em palavras a beleza,a doçura,a lucidez descritas nessas palavras.Estou em lágimas e emocionada.Que amor lindo dos seus pais,me lembrei dos meus amados avós,mineiros,que tambem partilhavam um amor assim, o verdadeiro amor eterno.
    No mais... desejo saúde para o ambos, o senhor e seu pai,tudo de bom e que este texto sirva de exemplo para esquentar os corações frios desses tempos modernos.
    Um abraço
    Stephanita Villanova

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  5. Muito lindo. Momentos que só algumas pessoas conseguem aproveitar nesta vida. Deus abençoe vocês.

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  6. Que lindo ...que lindo ...que lindo !!! BEijos para sei PAI ... pra você.

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  7. palavras mágicas para descrever um momento emocionante.... Deus abençoe vocês, amigo!

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  8. Boa noite, Campanella, que lindo texto; você contou de uma maneira doce, sensível o inevitável, infelizmente acontece.
    "eu estou aqui, mesmo com toda ausência, toda falta que o senhor possa sofrer. E o senti mais leve, pois de alguma maneira eu intuía que a mãe estava ali entre nós."

    Emocionou, parabéns, um grande abraço, a gente se perde um pouco dos antigos amigos, rs.

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