sexta-feira, 15 de maio de 2009

SEU JORGE


Foto by Fernando Campanella

(Corro o mundo pela beirada,
minha carroça, seu moço,
é o que levo da vida,
meu cavalo
é o vento que me guia na estrada.)

- Por causa da queda dos anjos, homi é fantasma, muié é bruxa, criança é saci.

Com o apregoar de seu imaginário, Seu Jorge se achega, ali no parque das águas, vindo do nada, da névoa de seus cento e um anos que lhe impingiu uma catarata nos olhos. Uma relíquia, um esperto fantasma que puxa prosa comigo.

Estou de visita, digo a ele, não sou daqui - mas para que explicação? O homem firma espaço de mansinho, fala da idade avançada, da esposa que já partiu e não lhe deixou filhos, e da ‘muiezinha’ que mantém em casa, sua única companhia: um radio de pilha onde ouve músicas de seu tempo.

O homem almeja, na verdade, uns trocados. Para quantos se orgulhará da longevidade? Quantos não ouvirão seus ‘causos’, suas lendas, seu passado quase se confundindo com memórias ouvidas da Estrada Real, antiga rota do ouro de Minas, e suas próprias lembranças das grandes matas que então havia? Mas é ele que me paga com o veludo da sua oratória , o encanto da voz, com os relatos da catarata avançada e da descrença que traz dos doutores –‘ minha pouca visão, meu filho, abro com a bênção das águas desta cidade.’

Dou-lhe umas moedas então e ele me diz que sou alma boa, que vai rezar por minha saúde. As contribuições dos turistas do balneário complementam a renda da pensão que recebe, ajudando nos duzentos ‘mirréis’ do aluguel e em outras despesas da casa. Vai comprar uma abóbora madura e pão com o dinheirinho arrecadado, não sem antes fazer uma ablução diante da imagem de Nossa Senhora da Saúde ali no parque. Acima das águas, só ela pra lhe afastar os demônios, deixar mais firmes os olhos e a articulação.

Nunca bebi, nem fumei –diz –me, ainda. E completa que o Divino Espírito Santo é seu companheiro no prolongado obscurecimento dos dias.

O avozão passa-me, assim, uma boa lábia, na captura de mais um turista a esmo. Despeja lições já tomadas , retomadas , de que da vida nada se leva, nada permanece. Porém, vindas daquele homem centenário, revestem-se tais verdades de um outro quilate , uma autoridade, por exemplo , de quem abriu um mar , ou de um vaga-lume só com a própria luz a contar.

Seu Jorge lembra-me um monge urbano, um museu itinerante. Coração que abraçou o sossego. Matreira sabedoria em extinção. Com sua figura, o calcário dos olhos, um intrincado desenho de raízes na face, o homem é um mito que de repente toma corpo , sopro de um vento, um sino de Minas.

Ao deixar o parque , após nosso breve encontro, despeço-me de um bruxo. – Sua benção, meu grande pai, até mais ver nas encruzilhadas do mundo.

E levo comigo a imagem de uma chama que não teme a cinza, a fagulha dos olhos de um encantador de sereias. Um tempo que tudo viu, o anonimato dos simples, um perdão.

Fernando Campanella, 03 de junho de 2007


quinta-feira, 14 de maio de 2009

LAPSO


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Nenhum verso estalou
no burburinho dos meses -
nenhum sentimento
em ressonância
ou revérbero
de cristais.

A vida sem poesia é lapso:
urso polar
em hiatos invernais.

(Fernando Campanella,

da série 'O Eu Confesso', poema XII)


quarta-feira, 13 de maio de 2009

VERSOS PARA CECÍLIA


(A Cecília Meireles)

Mesmo se tomasse por empréstimo
tua metáfora quando em mim pousam
leves teus versos, não a poderia tornar minha
que tão íntimo e próprio é meu silêncio
e meu ser vai disperso por outros ventos.
Posso sentir tua beleza recolhida e doce
no que evidente se mostra e no que se intui
na arquitetura sonora de teus versos.

O resto repousa na chave supra-humana
dos enigmas. Por isso então escrevo,
mais nada.
Fernando Campanella, 24 de Agosto de 1986

AMAR

õ
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Vive em mim o primitivo verbo
que os revezes da sorte
jamais suprimiram
ou lograram apagar.
Murmuro seu nome
tão límpido e lato
quando a alma da noite,
despida do mundo,
dentro de mim cresce.
Bebo então de suas gotas
de seu orvalho refratado

e como um velho vinho me sinto
a espuma boa derramada do odre.

Fernando Campanella, 1990

terça-feira, 12 de maio de 2009

EPHEMERA


Foto by Fernando Campanella

( A Leila)

Breve
como o dia
uma neve
e tudo
que se enseja.

Breve
como eu, você
um transe
uma nossa aliança

e a sombra
que nos corteja.

Breve, mas com leveza -
eis inteira a diferença-
e terno como a luz
que nos beija.

Fernando Campanella

EPHEMERA

(To Leila)

Brief
as a day
as a leaf
and everything
we might.

Brief
as you and I
a trance
a flattering shadow
our alliance.

Brief, but with levity -
that’s the whole difference-
and tender
eternal
as the kissing light.

Fernando Campanella


domingo, 10 de maio de 2009

RESQUÍCIO


Foto by Fernando Campanella

Às vezes
a dor de chuvas passadas
cai em mim fina,
reelaborada,
a tanto de não ser eu
assim mais que uma bolha
na espuma da tarde
molhada.

Fernando Campanella

quinta-feira, 7 de maio de 2009

METÁFORA


Foto by Fernando Campanella

Já não tento reter do dia
a luz que, por exata, concede
a chama alquímica dos amantes
a doçura de pétalas breves.
O tempo tem o galope das Fúrias
ventos que jamais enternecem.

Melhor correr, da memória, o labirinto,
drenar os aquíferos fundos
e aguardar: o que restar
será na noite a forma intáctil,
o espectro redivivo.

(Mais no mundo me tardo,
mais no comando de sombras
me esmero.)

Deus conceda que me baste
este último apelo de náufrago:
a metáfora,
pétala incorpórea com que me visto.

Fernando Campanella (Julho de 2006)