sábado, 29 de agosto de 2009

INTERTEXTO


Pinheiro do brejo,
Aquarela e foto de meu amigo José Henrique Coutinho*


Há os que aspiram
à " fria liberdade dos píncaros
sem nada "*;
há os que pousam em uma " lagoa rasa,
lugar da memória " onde habitam
quando " os desejos do corpo,
a metafísica" , * os sobressaltam:

templo de meus ruídos secos
e de meus ouvidos gastos,
eis vosso silêncio onde mergulho,
poetas que adoto,
a metáfora
singrando o mar enigmático.

Fernando Campanella

* A foto do trabalho em aquarela acima é de José Henrique Coutinho, meu grande amigo-irmão. Veja, abaixo, os links de blogs com seu belo, sensível trabalho:


* Os versos entre aspas no texto são de Fernando Pessoa e de Adélia Prado. O pequeno poema sobre o mar enigmático, em negrito, é de minha autoria, inspirado por, e intertextualizado com os versos dos poeta citados




quinta-feira, 27 de agosto de 2009

CAPELA DOS OSSOS


Foto by Fernando Campanella

(Os textos abaixo foram postados neste blogger em abril/2009. Trago-os, novamente, em homenagem a Graça Pires, Ana Gonzales, Emílio Moitas, Vieira Calado, meus amigos de Portugal.


Eu, que não vivi o Alentejo,
que não voei com as cegonhas
sobre suas albufeiras ao entardecer
( nem em suas quintas pernoitei)

e que não cantei odes
à glória de um D.Manuel e suas esquadras
( nem o Tejo naveguei)

que às suas capelas
não me desfiz dos ossos,
não me embriaguei do néctar de seus deuses
nem de sua flor mais bela
em Évora me enamorei,

eu, disso tudo,
por descompasso dos astros,
me privei.

Mas, oh, fado lusitano,
oh, alma dolente e migrante,
tua nostalgia,teu estar nunca estando,
esta sede por outros mundos
eu herdei

Fernando Campanella


MARES NUNCA D' OUTREM NAVEGADOS

Escrever sobre o Alentejo sem nunca ter estado em Portugal? Seria como falar do outono de New England sem ter visto in loco as tonalidades de suas folhas nessa específica estação do ano. Ou como falar dos ursos que em nosso inverno jamais vieram hibernar.

E no entanto falamos. E como poetas, cantamos, em nosso ritmo próprio, tanto as paisagens que nos são peculiares, tão nossas, como as que são de outros. Cantamos nossas montanhas, se as temos, nossas planícies, se as desbravamos, nossa gente com quem convivemos. Mas também descrevemos longos desertos que nunca percorremos, divagamos sobre galáxias que jamais viremos a conhecer: os tais 'mares' nunca d'antes, nunca d'outrem navegados.

"Para conhecer o mundo/ Não é necessário viajar pelo mundo..."*, dizia Lao Tsé. Com esses versos, o velho, lendário, mestre nos leva a refletir sobre o verdadeiro conhecimento, tão difícil como necessário, do eu mais profundo, com seus mitos.

Especialmente quando escrevemos sobre o nosso e os outros mundos, é o espaço mítico que adentramos, a nossa realidade interna, apossando-nos da geografia própria, ou alheia, apenas para transformá-la em símbolos, em matéria de sonho.


Konstantinos Kaváfis em seu poema 'Ítaca' empreende uma viagem a essa ilha grega, porém é um périplo interior, um retorno ao alumbramento dos sonhos que lhe povoam a alma. Não é a Ítaca física, de sua época, com suas vinhas, seu turismo pouco desenvolvido, a que visita, mas a terra de Odisseu, o território mítico:

“...Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
Bem compreenderás o sentido das Ítacas.”

(Ítaca, Konstantinos Kaváfis, trad. de Haroldo de Campos)

Escrevo sobre o Alentejo, pois, sem nunca ter estado em Portugal. Pelo converso, um alentejano poderia escrever sobre Minas sem minha região ter visitado. Eu o entenderia: o imaginário não se limita ao tempo-espaço, tem a sua característica dinâmica por onde tramita todo o universo.

A Pasárgada do Bandeira, a Bizâncio de Yeats... O mito é recorrente, eterno, ultrapassa o humano. Caminha com as próprias, teimosas, pernas, é de todos, e ainda não se fixa, não é prerrogativa de Ítaca, do Alentejo, de Minas, em particular, de ninguém.

Fernando Campanella

APRENDIZ


Foto by Fernando Campanella


E agora costuramos nossos jogos de bem-me-quer, não-me-quer , fase em que nos alinhavamos no infecundo círculo da incerteza emocional. Arriscamos aqui mergulhar em um abismo sem fim, sem pausa para retomarmos nosso ar, para inspirarmos, eu sem você, você sem mim, as isentas, vitais alegrias que eclodem à luz do dia. (Ah, angústia de amor jamais suprido, mar de vai-e-vens descomunais) Mas o aprendizado da alma é bem assim, dizem os doutos sábios: mergulhar, mergulhar, e subir. Então sou aprendiz de mim.



Fernando Campanella

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

IDENTIDADE


Photo by annkelliott from Flikckr

Sou um recém-cogumelo
no pasto-Minas brotado
ao mundo nem tanto valho
mas se me buscares
trago por abrigo a sombra
- e estrelas por identidade.

Fernando Campanella


segunda-feira, 24 de agosto de 2009

LEGADO


Snow goose, photo by Gaëtan Bourque (Imapix) at Flickr *

Aqueles gansos sobrenadam o lago
descuidados da estação de partir.
Meus olhos dispersam seus bandos,
meu coração em bravas asas
é meu tesouro ao se abrir.

No mundo certas uvas da melhor cepa
eu colho. Deste vinho, meu legado,
outras almas beberão por mim.

Fernando Campanella


* Transcrevo aqui , com minha tradução, o belo texto do fotógrafo Gaëtan Bourque em sua nota descritiva sobre a foto dos gansos se alimentando na Baie-du-Febvre, Québec, Canada:

"The Snow Goose (Chen caerulescens) is a North American species of goose. Its name derives from the typically white plumage. Twice a year, hundreds of thousands of snow geese alight alongside the St. Lawrence River. An unbelievable feast for the eyes and ears, the immense flocks transform the river into a rippling sea of white as the air fills with deafening cries. And when these valiant vagabonds suddenly take wing, the sight of their breathtaking aerial ballet is the stuff of legend."

(Gaëtan Bourque)


"O ganso-da-neve (Chen caerulescens) é uma espécie de ganso norte-americano. Seu nome deriva de sua plumagem tipicamente branca. Duas vezes por ano, centenas de milhares deles pousam ao longo do rio São Lourenço. Uma inacreditável festa para os olhos e ouvidos, seus bandos imensos transformam o rio em um ondulado mar de branco, ao mesmo tempo em que o ar se enche com grasnares ensurdecedores. E quando essas bravas aves errantes subitamente batem asas, a visão de seu empolgante balé aéreo é típica dos sonhos."

(Gaëtan Bourque, tradução de Fernando Campanella)

domingo, 23 de agosto de 2009

UM POEMA E SUA TRADUÇÃO


Photo by Richard Murkland from Flickr
http://www.flickr.com/photos/richarddigitalphotos/2960631465/

ALCHEMY

Wise is the alchemy of the leaves

- acid green
treasured sepia
crumbling gold -

I silently watch my seasons
unfold.

Fernando Campanella


ALQUIMIA

Sapiente,
a alquimia das folhas

- o verde ácido
o sépia precioso
o ouro solvente -

observo minhas estações
desdobrarem-se
silentemente.

Fernando Campanella


sábado, 22 de agosto de 2009

POEMAS ANTIGOS*


Foto by Fernando Campanella

REPASTOS

Penso nas vacas como em um mundo enrolado
- a cosmogonia circunscrita das vacas.
Mas que sei de universos cifrados?
Eu, que suposta ciência tenho da alma,
cultivo angústias do contextualizar.
Sei que os bezerros às vezes param
e me observam
quando por sobre o muro de silêncio os contemplo
- é quando uma súbita luz corta o tempo.

Depois nada mais acontece
a não ser um delicado ruminar de filhotes
absolvendo a tarde das metafísicas inúteis.

Fernando Campanella, 1993.

*Mais algumas palavras sobre meus poemas antigos, focalizando a questão: alterá-los ou deixá-los como estão?
No poema acima optei pela primeira alternativa. Substituí alguma palavra aqui, ali, acrescentei um verso inteiro, o qual acredito ter contribuído para uma iluminação, uma leveza, no tema da incomunicabilidade do poema. O título só foi dado agora, também.

Deixo aqui, as palavras do poeta Yeats quanto ao assunto 'refazer um poema':

The friends that have it I do wrong
Whenever I remake a song
Should know what issue is at stake
It is myself that I remake.

"Aqueles que acham um problema
Quando refaço algum poema
Saibam por que problema eu passo:
É a mim mesmo que refaço."

(Versos de William Butler Yeats em tradução
de Antonio Cicero,