terça-feira, 3 de março de 2009

CONVERSA DE COMPADRES*



Foto by Fernando Campanella

Conta-se que lá pelas bandas do Curralinho, a umas boas léguas de Santana de Caldas, vivia um homem, chamado de Bastião Medonho, sovina até os ossos, mestre no ofício de contar os grãos, para gerar maior lucro e evitar dissipação.

Seu sítio era o que mais prosperava nas redondezas. Possuía tal homem uma azenha, onde transformava o milho em fubá ou quirera. A ele recorriam os sitiantes do lugar, trazendo parte de sua safra de milho para a troca com a farinha ou o fubá. E o Sr. Bastião sempre lucrava, o que os vizinhos levavam era três vezes menos o que traziam.

Se era hora do café, às crianças, cujos pais até seu sítio chegavam para uma visita, de amizade ou a negócio, era dada apenas a metade de um bolinho de chuva que a esposa fazia; se hora do almoço, uma lasquinha cozida do imenso capado que abatera...Tudo calculado, medido, cronometrado.

Seus cavalos eram os mais belos e mais possantes, seu milharal o mais viçoso, seu gado o mais gordo da região.

Conta-se , também, que Bastião Medonho era um caloteiro de primeira, mau pagador, embora houvesse amealhado uma pequena fortuna, que esquentava o único banco da pequena Santana de Caldas. Acertava suas dívidas só quando não havia mais jeito e pesava contra ele a ameaça de um processo na comarca da região.

Ora, havia um compadre seu, o Sr. Maneco da Lua, um homem de caráter íntegro, pródigo, uma 'candura de pessoa' , como se dizia por lá. Conheciam-se os dois desde que nasceram. Brincaram juntos, as famílias tinham um laço de compadrio que remontava há várias gerações, embora morassem distantes, o Sr. Maneco vivendo um belo sítio a uns vinte quilômetros dali.

Acontece que, certa vez, o Sr. Maneco vendera algumas cabeças de gado para o compadre Bastião, sem documento assinado, na base da mais pura confiança, da amizade que os unia desde o berço. E nunca recebeu o dinheiro da transação. Também nunca cobrou: o Bastião era ‘cumpadi’, amigo dos ‘bão’ um ‘irmãu’. E se o companheiro não pagava era porque devia estar em situação 'das pior', como este sempre lhe dizia, chorando as mágoas, prometendo saldar a dívida logo que se recuperasse.

O tempo passou e Bastião nunca mais deus as caras no sítio do compadre, mais por safadeza que por vergonha de encarar o bobo do compadre.

O Sr. Maneco não era mesmo um homem deste mundo. Colocava os valores do sentimento acima de tudo, a fidelidade, a integridade eram seus bens maiores, embora fosse constantemente acusado de ingenuidade pela esposa e familiares.

E certa feita, em regresso de uma viagem de vários dias, Bastião passou em um armarinho de Santana para a compra de um botão para sua camisa. E viu que lá estava o Maneco. Tentou disfarçar, evitar o encontro, um certo mal-estar lhe esquentando as veias como se houvesse enxergado um fantasma. Mas o bom homem dele se aproximou, em sua aura de cordialidade, sempre discreto em sua elegância, o chapéu bem limpo, os óculos, a calça mais curta, deixando ver as botas sem meia, o embornalzinho a tiracolo.

- Salvi, Cumpadi Bastião. Comu tem passado a famia? E ocê, irmãu, já ta melhozinho lá nu sítiu? Miorô as coisa por lá?

- Vigi, cumpadi, a situação ta ruim, mais ta ruim... to penano dimais, muita chuva, perdi o milho tudinhu, Deus tenha dó....

E continuou a ladainha, tentando despertar piedade no amigo, evitando tocar no assunto da dívida contraída.

Porém, o Maneco também nem referência fez, só lembrou os bons tempos em que nadavam nas enchentes, lá no Lava-Cavalos, bons tempos da infância em comum dos dois. E despediu-se assim como viera, uma leveza de espírito, quase um sopro de candura. Uma luz calma que de repente alumia e esvaece.

Meio encolhido pela grandeza do amigo, disse então Bastião ao dono da loja -Bom sujeitinhu este Manequinhu – Pareci até um espíritu di tão levezinhu .... E riu, meio a contragosto.

- O senhor tá bem? – perguntou o proprietário do armarinho. – Tava falando sozinhu... Tá passandu bem?

- Tava proseanu aqui com meu Cumpadi, ora, o Maneco da Lua, irmão dos báum.....

- O Sô Maneco lá da Juruaia? – indagou o dono da loja, espantado?

- Sim, meu cumpadi....

- Ele faleceu esta manhãzinha ... O corpo tá lá na igreja agora. O enterro é daqui a pouco...

Diz a lenda que Bastião, após confirmar falecimento do compadre pelo anúncio da igreja, se arrepiou dos fios do cabelo às unhas do pé, e disparou da loja, como se o Maldito, o Coisa-ruim, a Besta-de-Barba-de-Bode, o tivesse atacado.

Seu sítio foi vendido, a família dali se foi. De Bastião Medonho não mais se ouviu falar.

Se honrou as dívidas, se continuou medonho, não se sabe...Se morreu, ninguém sentiu.

Fernando Campanella, 03 de Março de 2009.

* A foto no início desta página apenas serviu de inspiração para este conto que é trabalho de mais pura ficção.

4 comentários:

  1. Maravilha de conto!!! Alma de Minas totalmente!! Perfeitissima!!! Parabéns!!!

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  2. Obrigado, Antonio Carlos. Teus olhos enxergam esta Minas tão característica tb. Esta foto aí tem muito desses olhos, eles viram primeiro, eu registrei. Grande abraço.

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  3. Delicioso conto, no estilo das prosas boas do interior.

    Amei especialmente esta parte:

    "E despediu-se assim como viera, uma leveza de espírito, quase um sopro de candura. Uma luz calma que de repente alumia e esvaece."

    Puro sopro de beleza!

    Beijos!

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  4. Puxa, obrigado, Flor. Olhando este trecho agora, sabe que achei bonito tb. Gosto de dar uma pincelada de lirismo, assim da nada, pra dar um realce na crônica. Bjos.

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