terça-feira, 17 de março de 2009

A TABACARIA



Foi no início da década de setenta que me apresentaram Fernando Pessoa. Eu estudava em Belo Horizonte, à época, um adolescente tímido do interior, vivendo, solitário, naquele cenário grande.

Era um dia chuvoso. A professora de Língua Portuguesa parecia não estar com disposição para Gramática Histórica naquela tarde. Ainda menos dispostos estariam os alunos para aquela matéria, ditada pela mestra, ou copiada do quadro. Realmente, os pingos d’água, desenhando formas móbiles nas janelas de vidro da sala de aula, e o sussurro do vento favoreciam um outro tempo, não o do latim vulgar, do português antigo.

A ocasião , parece ter sentido a mestra, era para uma certa leitura da alma. E nada melhor que buscar na linguagem de um poeta aquele espelho, aquela voz do que sentimos , porém nunca encontramos palavras adequadas para dizer. Momento de confronto existencial com nosso enigma, e de uma invocação às eternas Sibilas, se não para respostas, certamente para um alumbramento, uma identificação.

Não sei o que levou a professora a escolher aquele escrito específico do Pessoa para a leitura daquela tarde. Se foi algo pré-determinado, ou se encontrou o poema, aleatoriamente, no livro que tinha em mãos, nunca poderei dizer. Mas o que realmente importa é que ‘A Tabacaria’ causou fundo impacto em mim. E deve ter tocado os meus colegas também, imagino, uma vez que se fez um profundo, compenetrado silêncio na sala durante a leitura do longo poema.


“Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo...” Foi a partir destes versos, lá pelos meus quinze anos, que senti que faria de meus 'nadas', desta matéria impalpável do 'fugidio' que chamamos de sonhos, a minha poesia.


À parte o estudo do Latim, da Gramática Histórica, que tanto subsídio têm dado ao que escrevo, é na interação entre meu eu e a palavra, na poesia, que me empenho, assim, em prosseguir a longa tradição dos que atentaram à alma e escreveram os sonhos, reencantando a língua. Por onde os oráculos continuam.


Fernando Campanella, 17 de Março de 2009.

FERNANDO PESSOA, UM POEMA



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Fernando Pessoa

segunda-feira, 16 de março de 2009

AO AMOR


Foto by Fernando Campanella


É na anunciação de galos-anjos da madrugada
que a terra acolhe teu nome
e as flores te comunicam em perfume
despertando o sono dos séculos.

É em intuições de estrelas mais raras
que os humanos te firmam
e se afastam da prepotência dos cetros.

Flor do sopro divino, natureza dos milagres,
Amor, és arquétipo de luz
a destilar do lodo todo o puro encanto.

Bendita a alquimia
dos que lustram minérios cansados
e à força de vida
te fazem despontar e crescer.

Fernando Campanella, 1984

domingo, 15 de março de 2009

DOIS POEMAS DE CESARE PAVESE


Foto de http://images.google.com.br/
imgres?imgurl=
http://absurdo.files.wordpress.com


No caderno Cultura do Estado de São Paulo deste domingo, um artigo sobre o escritor italiano Cesare Pavese (1908-1950), em vista do lançamento, na semana passada, de sua obra 'Trabalhar Cansa', em edição bilingue, tradução de Maurício Santana Dias, pelas editoras, em conjunto, Cosac Naify e Letras.

Na reportagem, a escritora Natalia Ginzburg (1916-1991), uma das amigas próximas do poeta, em um trecho de seu artigo 'Retrato de um Amigo, (Revista Ficções, editora 7Letras, Junho de 2000) comenta sobre seu suicídio, em um quarto de hotel em Turim:

"... Morreu no verão...Nenhum de nós estava lá. Escolheu para morrer um dia qualqer daquele tórrido agosto, e escolheu um quarto de hotel próximo à estação, querendo morrer na cidade que lhe pertencia, como um forasteiro. Havia imaginado sua morte numa poesia antiga, de muitos e muitos anos atrás:

Não será necessário abandonar a cama.
Só a aurora entrará no quarto vazio.
Bastará a janela para vestir cada coisa
De uma claridade tranquila, quase uma luz.
Pousará uma sombra escarna no rosto supino.
As lembranças serão coágulos de sombra
Tão escondidas como antigas brasas
Na lareira. A lembrança será a chama
Que ainda ontem consumia os olhos apagados."


Outro poema de Cesare Pavese:

MANIA DE SOLIDÃO


Como um jantar frugal junto à clara janela,
Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu.
Se saísse, as ruas tranquilas deixar-me-iam
ao fim de pouco tempo em pleno campo.
Como e observo o céu — quem sabe quantas mulheres
estão a comer a esta hora — o meu corpo está tranquilo;
o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres.
Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar
a terra na ancha planura. As estrelas são vivas,
mas não valem estas cerejas que como sozinho.
Vejo o céu, mas sei que entre os tectos de ferrugem
brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos.
Um grande golo e o meu corpo saboreia a vida
das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo.
Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se
no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel.
Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,
que a aceita impassível: um cicio de silêncio.
Cada coisa na escuridão posso sabê-la,
como sei que o meu sangue circula nas veias.
A planura é água que escorre entre a erva,
um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra
vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias
com todas as coisas que vivem nesta planura.
A noite importa pouco. O rectângulo de céu
sussurra-me todos os fragores e uma estrela miúda
debate-se no vazio, longe dos alimentos,
das casas, distinta. Não se basta a si mesma
e precisa de muitas companheiras. Aqui no escuro, sozinho,
o meu corpo está tranquilo e sente-se soberano.

(Cesare Pavese, in 'Trabalhar Cansa' Tradução de Carlos Leite)

sábado, 14 de março de 2009

APPALACHIAN MOUNTAINS


Foto from Wikepédia

MANTIQUEIRA MOUNTAINS


Foto by Fernando Campanella

http://www.youtube.com/watch?v=96Zc9enoGCg
( Aaron Copland's Appalachian Spring, conducted by Peter Wilson)

Do alto destes montes, posso sentir a terra mais quieta, as cidades sem ruídos, as árvores desenhadas em antigas porcelanas chinesas lá embaixo.

Estes cumes são o de que preciso para abstrair certa leveza da vida, uma energia menos carregada do humano.

Aqui, o silêncio é interrompido apenas pela canção interna do vento, ou por um pio rarefeito de um pássaro, sua mística atravessando o ar.

O mundo visto daqui é uma aquarela cambiando cores ao longo do dia. Ao longe, às vezes, alguma tempestade se encorpa, confunde céus e terra, e passa.

Quando desço destes refúgios, novamente sinto o arsenal das cores carregadas de nossos conflitos. Paciência, não trago ainda a vibração dos santos.

Sorte minha que destes fundos silêncios e destas úmidas luas vez em quando me embriago. E que como Copland posso amar e me inspirar nas primaveras de minhas nascentes, como ele em sua Appalachian Spring*.

Fernando Campanella

*Appalachian Spring, no youtube acima, é uma obra do compositor norte-americano Aaron Copland, nascido no Brooklyn, Nova York, considerado por muitos o maior compositor americano do século XX e que se tornou particularmente conhecido por trabalhos que refletiam vários aspectos da vida na América.

sexta-feira, 13 de março de 2009

LUAS BRANCAS


http://www.overmundo.com.br/_
banco/img/1188321615_lua_agua.jpg

O medo de te perder
é o medo de me encontrar
- e trevo silente
ao sem-eira do vento
ao remoinho das brancas luas
retornar

Síndrome das crateras vagas
das horas nuas.
( Ai do estéril ventre
de toda antiga ausência
da sombra das palavras tuas.)

Fernando Campanella