sábado, 23 de maio de 2009

AO VENTO


Foto by Fernando Campanella


Fica comigo, mas não posso pedir ao vento
que sopre ao alcance de meu ouvido,
ou à terra que abençoe nossos longos segredos

- nem mesmo da luz querer ouso
que se demore em meu abrigo.

Quando os dados lançados e até meu silêncio
contra toda certeza parecem que conspiram

- e caso os dedos do mundo
em suas unhas recurvas nos firam -

releva, e fica comigo, os anjos sabem mais alto
daquilo em que insisto, do que preciso.

Fernando Campanella

quarta-feira, 20 de maio de 2009

DA LUA


Foto by Fernando Campanella

LUNARES


Foto by Fernando Campanella

Ora enigma, e oráculo, ora reminiscências de Li Po; ora aridez, e tentáculo, ora floreado barroco, ou de uma 'art noveau', a lua em três tempos, seus motos e motivos em mim:


A lua é um criptograma.
Decifra-me - diz ela
à minha metade analítica
e trôpega.
À minha outra porção,
mais distraída
ante o mistério das coisas,
ela sussurrra apenas:
bebe de meu halo e sonha.

Fernando Campanella, 1992

Lua retrô
De Kioto
Da monja implume
De mel

De meu silêncio oco

Lua nouveau
Do esgoto
Do vaga-lume
Da sarna ardente

Do ovo choco.

(Fernando Campanella,09 de Março de 2009)

Lua, lua, lua,
três vezes giro
para retornar
à fria estática
de teu silêncio

(nada, nada, nada
senão eco
reflexo
de meu pensamento)

(Fernando Campanella, Maio de 2009)

CREPÚSCULO, ARTE E EMILY DICKINSON


Foto by Fernando Campanella

As tardes de outono propiciam crepúsculos inigualáveis. Embora os atores – nosso velho, vaidoso sol, as frívolas nuvens, o ar, o imponderável vento... – sejam sempre os mesmos em outros períodos do ano, é nesses dias que precedem o inverno que os espetáculos do fim da tarde rendem maior vibração em luz, forma, cor e tom.

Os crepúsculos outonais lembram algo como o capricho de um demiurgo a brincar com infinitas possibilidades na reorganização de toda matéria pré-existente. Uma arte de tamanha grandeza, de tão poderoso efeito ,onde o criador, o sujeito, se esquece e se confunde com o objeto da própria criação.

Assim, em escala menor, com todos artistas que, movidos por um impulso interno, reestruturam o que vivem, o que recebem, neste insondável processo mágico que denominamos ‘criar’.

Assim, com a poetisa Emily Dickinson que, tocada pelos fenômenos naturais de Amherst, reestruturou as impressões, as emoções internas, rendendo este maravilhoso crepúsculo-poema:

219


Ela varre com vassouras multicores
E sai espalhando fiapos,
Ó Dona arrumadeira do crepúsculo,
Volta atrás e espana os lagos:

Deixaste cair novelo de púrpura,
E acolá um fio de âmbar,
Agora, vejam, alastras todo o leste
Com estes trapos de esmeralda!

Inda a brandir vassouras coloridas,
Inda a esvoaçar aventais,
Até que as piaçabas viram estrelas —
E eu me vou, não olho mais.

Tradução: Aíla de Oliveira Gomes

219
She sweeps with many-colored Brooms —
And leaves the Shreds behind —
Oh Housewife in the Evening West —
Come back, and dust the Pond!

You dropped a Purple Ravelling in —
You dropped an Amber thread —
And how you've littered all the East
With duds of Emerald!

And still, she plies her spotted Brooms,
And still the Aprons fly,
Till Brooms fade softly into stars —
And then I come away —

sexta-feira, 15 de maio de 2009

SEU JORGE


Foto by Fernando Campanella

(Corro o mundo pela beirada,
minha carroça, seu moço,
é o que levo da vida,
meu cavalo
é o vento que me guia na estrada.)

- Por causa da queda dos anjos, homi é fantasma, muié é bruxa, criança é saci.

Com o apregoar de seu imaginário, Seu Jorge se achega, ali no parque das águas, vindo do nada, da névoa de seus cento e um anos que lhe impingiu uma catarata nos olhos. Uma relíquia, um esperto fantasma que puxa prosa comigo.

Estou de visita, digo a ele, não sou daqui - mas para que explicação? O homem firma espaço de mansinho, fala da idade avançada, da esposa que já partiu e não lhe deixou filhos, e da ‘muiezinha’ que mantém em casa, sua única companhia: um radio de pilha onde ouve músicas de seu tempo.

O homem almeja, na verdade, uns trocados. Para quantos se orgulhará da longevidade? Quantos não ouvirão seus ‘causos’, suas lendas, seu passado quase se confundindo com memórias ouvidas da Estrada Real, antiga rota do ouro de Minas, e suas próprias lembranças das grandes matas que então havia? Mas é ele que me paga com o veludo da sua oratória , o encanto da voz, com os relatos da catarata avançada e da descrença que traz dos doutores –‘ minha pouca visão, meu filho, abro com a bênção das águas desta cidade.’

Dou-lhe umas moedas então e ele me diz que sou alma boa, que vai rezar por minha saúde. As contribuições dos turistas do balneário complementam a renda da pensão que recebe, ajudando nos duzentos ‘mirréis’ do aluguel e em outras despesas da casa. Vai comprar uma abóbora madura e pão com o dinheirinho arrecadado, não sem antes fazer uma ablução diante da imagem de Nossa Senhora da Saúde ali no parque. Acima das águas, só ela pra lhe afastar os demônios, deixar mais firmes os olhos e a articulação.

Nunca bebi, nem fumei –diz –me, ainda. E completa que o Divino Espírito Santo é seu companheiro no prolongado obscurecimento dos dias.

O avozão passa-me, assim, uma boa lábia, na captura de mais um turista a esmo. Despeja lições já tomadas , retomadas , de que da vida nada se leva, nada permanece. Porém, vindas daquele homem centenário, revestem-se tais verdades de um outro quilate , uma autoridade, por exemplo , de quem abriu um mar , ou de um vaga-lume só com a própria luz a contar.

Seu Jorge lembra-me um monge urbano, um museu itinerante. Coração que abraçou o sossego. Matreira sabedoria em extinção. Com sua figura, o calcário dos olhos, um intrincado desenho de raízes na face, o homem é um mito que de repente toma corpo , sopro de um vento, um sino de Minas.

Ao deixar o parque , após nosso breve encontro, despeço-me de um bruxo. – Sua benção, meu grande pai, até mais ver nas encruzilhadas do mundo.

E levo comigo a imagem de uma chama que não teme a cinza, a fagulha dos olhos de um encantador de sereias. Um tempo que tudo viu, o anonimato dos simples, um perdão.

Fernando Campanella, 03 de junho de 2007


quinta-feira, 14 de maio de 2009

LAPSO


Foto by http://2.bp.blogspot.com/_

Nenhum verso estalou
no burburinho dos meses -
nenhum sentimento
em ressonância
ou revérbero
de cristais.

A vida sem poesia é lapso:
urso polar
em hiatos invernais.

(Fernando Campanella,

da série 'O Eu Confesso', poema XII)


quarta-feira, 13 de maio de 2009

VERSOS PARA CECÍLIA


(A Cecília Meireles)

Mesmo se tomasse por empréstimo
tua metáfora quando em mim pousam
leves teus versos, não a poderia tornar minha
que tão íntimo e próprio é meu silêncio
e meu ser vai disperso por outros ventos.
Posso sentir tua beleza recolhida e doce
no que evidente se mostra e no que se intui
na arquitetura sonora de teus versos.

O resto repousa na chave supra-humana
dos enigmas. Por isso então escrevo,
mais nada.
Fernando Campanella, 24 de Agosto de 1986