sábado, 5 de junho de 2010

EM SEDA, BACH E A LUA DE LI PO


Foto by Fernando Campanella


EM SEDA

Por esta luz que me alumia
e me inventa em seda a estrada

entre a arte, alívio da memória,
e o mais trêmulo aceno do nada

- se com o mundo me acertei,me dasavim
já nem sei -

sou o que perdidamente
tomou rumo de mim.


Fernando Campanella, 2010




Há uma implacável dinâmica no tempo que nos faz eternos perdedores do presente, tecelões e ao mesmo tempo desfiadores da memória. E a memória se presta a isto: a desfilar seus fantasmas. Por isso ela é melhor rediviva na arte. A arte que, para mim, é a sìntese, a reconstrução possível, a recuperação sonhada, e eu diria , quase, a felicidade, mas esse conceito me escapa. Fico com a satisfação interna, com a possibilidade.

(Fernando Campanella)

A LUA DE LI PO

(BEBO SOZINHO AO LUAR)


Entre as flores há um jarro de vinho.
Sou o único a beber: não tenho aqui nenhum amigo.
Levanto a minha taça, oferecendo-a à Lua:
com ela e a minha sombra, ja somos três pessoas,
Mas a Lua não bebe, e a minha sombra imita o que faço.
A Sombra e a Lua, companheiras casuais,
divertem-se comigo, na primavera.
Quando canto, a Lua vacila.
Quando danço, a minha Sombra se agita em redor.
Antes de embriagados, todos se divertem juntos.
depois, cada um vai para a sua casa.
Mas eu fico ligado a esses companheiros insensíveis:
nossos encontros são na Via-Láctea.


(Li Po, tradução de Cecília Meireles)




terça-feira, 1 de junho de 2010

ESTRELA DA TARDE, DOIS MOMENTOS


Foto by Fernando Campanella

I
NATUREZAS

Já não me iludes,
estrelinha mimada e arredia,
não me sabes, nem me sentes,
por que então na toca da noite
eu , romântico, te buscaria?

És o mesmo que qualquer coisa,
que tanto fez, como tanto faz,
qualquer dia que já tarde indo
nenhum trato outro dia me traz.

Tens das formigas a natureza alheia
e, malgrado tua luz, a inconsciência fria.

És, sim, algo qualquer, um pó errante,
um limão de que eu bebesse o sumo
só para fruir o teu azedo instante.

Nem mesmo vês que agora sou como tu,
um cego de ti, uma bela viola,
um falso diamante.

Fernando Campanella, 2006
II

FAC- SÍMILE

Estrela, minha Alfa Centauro,
ou uma outra qualquer
a inumeráveis anos-luz de indiferença,
sou um terráqueo instável , nem me sabes,
mas gosto de à noite deitar-te em meus olhos,
cansado das luzes nervosas onde me lavro.

Estrela, meu astro reinventado,
por que assim enternecido de ti me enamoro,
na funda noite exorcizado ?

Serias como humanos
que de longe nos encantam
trazendo de perto o cheiro de entranhas,
o encadeamento dos hábitos?

Apascentarias ovelhas à tua órbita?
Saberias da duração de tua glória?

E se eu te tocasse
e te dissolvesses em absurdos ares?

Se eu te devorasse , terias de mim próprio
a consistência mesmíssima de um pó,
a fragilidade de um pirilampo
- tudo tão simples fac-símile de tudo,
tão em si mesmo desmitificado?


(Estrela, tua terna esfinge me basta.)

Fernando Campanella, 2007


quarta-feira, 26 de maio de 2010

EMILY DICKINSON, DIÁLOGO & TRADUÇÃO


Foto by Fernando Campanella

quantas mortes incorporo
- sobrevida -
para palpar a leveza
de uma folha caída

(Poema inspirado pelo poema
de Emily Dickinson, abaixo, por Fernando Campanella)

Há uma certa inclinação da luz
em tardes invernais
que oprime como o peso
dos tons dos hinos nas catedrais.

Celestial ferida nos impõe,
nenhuma cicatriz incita
salvo interna diferença
onde o significado habita.

Ninguém nada pode lhe ensinar,
ela é o selo-desespero,
uma aflição imperiosa
enviada a nós do ar.

Quando chega, a paisagem atenta,
as sombras cessam o respirar,
quando parte, é como a distância
no olhar da morte a se alongar.

(Emily Dickinson, tradução de Fernando Campanella)

Dedico a Emily esta peça do compositor britânico Henry Purcell (1659-1695), The Hole in the Wall.




There’s a Certain Slant of Light,
Winter Afternoons —
That oppresses, like the Heft
Of cathedral Tunes —
Heavenly Hurt it gives us — 5
We can find no scar,
But internal difference,
Where the Meanings, are — None may teach it — Any —
’Tis the Seal Despair — 10
An imperial affliction
Sent us of the Air —
When it comes, the Landscape listens —
Shadows — hold their breath —
When it goes, ’tis like the Distance 15
On the look of Death —

(There's a certain slant of light, Emily Dickinson)


domingo, 23 de maio de 2010

ASSIM PASSA... (SIC TRANSIT...)


Foto by Fernando Campanella


...E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate)...

(T. S. Eliot, trecho de 'A terra desolada',
tradução de Ivan Junqueira)


e quando dei por mim
vi um molusco
arrastando nos ombros
o tempo da casa

vi um monge rondando em ócio
- o hábito
a chama
e a mariposa alucinada

folhas caducas
espectros
(os ecos, os ecos)
a roda tocada à memória -

vi a turbulências das moscas -
a lava
e a concha sonhando a asa -

quando cheguei ao limbo de mim
e o vento seguiu
senti um abandono
e uma distância sem fim

pesei o silêncio
e o mundo certo
que perdi

vi a pedra chamando a água

Fernando Campanella, 2006


quarta-feira, 19 de maio de 2010

NOTURNO


Pintura de Jean Hey- Maitre de Moulins
'A virgem em glória rodeada por anjos'
(1489/99), Notre Dame, Moulins
273 × 320 - 37k - jpg - 4.bp.blogspot.com/.../s320/maitredesmou

Senhora de meus tormentos,
duras noites me impuseste,

embala tua criança,
dá-me de teu colo
a endorfina que amanhece.

Fernando Campanella, 2006.


sábado, 15 de maio de 2010

SINE QUA NON (HINO AO SOL)


Pôr do sol nos contrafortes da Serra da Mantiqueira
Foto by Fernando Campanella

Ah, este instante na tarde
quando o sol bate seu ponto
e se despede
de um afugentar as sombras
de mais um dia de claro ofício.

Pago, pelos préstimos,

ao operário 'sine qua non'
com a moeda de meus sonhos
um certo dourar de meus sentidos.

Logo à noite vou desejar

que no outro dia retorne
que nunca me deixe sem seu brilho.

Posso então a alma estendida

ressonar: a luz, eu sei,
em seu percurso também me busca
e sempre haverá de me achar.


Fernando Campanella, maio de 2007.




Segundo Édouard Schuré, em sua obra 'Os grandes iniciados', o 'Salmo 104' do Antigo Testamento "é uma adaptação poética do 'Hino ao Sol' de Amenófis IV (Akhenaton), faraó do Egito à época de Moisés'.
Abaixo, trechos do Hino ao Sol, de Akhenaton, e do salmo 104, de Davi.

...Quando tu te vais em paz ao horizonte ocidental,
A terra fica na escuridão como morta
Os que dormem encontram-se em suas camas,
As cabeças cobertas com mantas,
Um olho não vê o outro.
Se roubassem seus bens que se acham debaixo de suas cabeças,
Eles nem perceberiam.
Todos os leões saem de suas cavernas;
Todas as serpentes, elas mordem...
Jaz a terra em silêncio.
Seu criador repousa no horizonte...

('Hino ao Sol', Akhenaton)

...Designou a lua para marcar as estações; o sol sabe a hora do seu ocaso.
Fazes as trevas, e vem a noite, na qual saem todos os animais da selva.
Os leões novos os animais bramam pela presa, e de Deus buscam o seu sustento...

(Salmo 104, Davi)


segunda-feira, 10 de maio de 2010

NOVELOS


Foto by Fernando Campanella


ora dois flamingos bordados
ora teias despidas de luz
teus olhos lembram tramas
e desfechos -
infinito costurar e desfazer
da paixão

o azul que me chama na tarde
logo são galhos que entrançam
labirintos por onde enredo

teus olhos que me adentram
- estes novelos dispersos

Fernando Campanella