terça-feira, 7 de maio de 2013

LIMBO

Foto por Fernando Campanella


...E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca...
(T. S. Eliot, “A terra desolada”,
tradução de Ivan Junqueira)

E quando dei por mim
vi um molusco
arrastando nos ombros
o tempo da casa.

Vi um monge rondando em ócio
– o hábito
a chama
e a mariposa alucinada

folhas caducas
espectros
(os ecos, os ecos)
a roda tocada à memória.

Vi a turbulências das moscas
a lava
e a concha sonhando a asa.

Quando cheguei ao limbo de mim
e o vento seguiu
senti um abandono
uma distância sem-fim.

Pesei o silêncio
e o mundo certo
que perdi –

vi a pedra chamando a água.


sexta-feira, 26 de abril de 2013

CURANDEIRA



Três vezes Minas me perguntava:
que mal eu corto? – Ferida –
a cada vez eu respondia.
Ela completava o círculo: ferida eu corto.
Às vezes uma lembrança de carqueja
me amarga a língua
e um resquício de mato chimango
me chama de onde vim.
- É cedo, a alma ainda supura.

Bordo cruzes e mantras
em torno à outra dor, que não seca,
a ausência que jamais supri.

Fernando Campanella

(Foto abaixo: Flor mato chimango, por Gilberto Palma, do Flickr:






Flor mato chimango

quinta-feira, 18 de abril de 2013

CONHECIMENTO DAS CIGARRAS


Fotos por Fernando Campanella


Tão antiga a lenda da cigarra e a formiga, atribuída ao lendário Esopo, recontada por La Fontaine em várias traduções mundo a fora. E eu nunca vi uma cigarra ao vivo. Só escuto seu estridular infindo que às vezes vem martelar em meus tímpanos no verão.

Das onipresentes formigas, estou exausto: desfilam em intermináveis procissões atrás das sobras da cozinha, de outros cômodos da casa, obrigando-me a uma quase obsessão com a limpeza, penso duas vezes antes de tomar um café em meu quarto, em frente ao computador, no momento em que escrevo esta crônica.   

Nunca vi uma cigarra ao vivo, ou melhor, outro dia, quase as vi, agarradas no tronco de uma árvores, inúmeras, douradas, com seus ferrões como estiletes, assemelhando-se a escaravelhos de ouro. Pequenos seres em estranheza e mistério, a despertar antigo  pavor em mim. Douradas, secas, e mortas. Ocas, no tronco somente suas cascas ou invólucros.

Em meu vergonhoso desconhecimento desses bichos, imaginei-as tendo morrido, ali, subindo os troncos, devoradas pelas implacáveis formigas, só lhes restando a carcaça. Haviam morrido de tanto cantar, dizia-me meu lado poeta. Mas minha porção investigativa falou mais alto, fui às enciclopédias descobrir sobre o comportamento desses mitológicos insetos.

Ah, então as cigarras põem seus ovos em troncos de árvores, os quais eclodem em ninfas que descem ao subsolo, ali vivendo, na escuridão, por anos. Depois, ainda ninfas, retornam ao ar, subindo pelos troncos, e se desfazem dos exoesqueletos, tornando-se  adultas, em um processo denominado “ecdise”, ou “muda”.

As cigarras que observei haviam me enganado. Não estavam mortas, nem secas. O que eu presenciara foram suas “casacas”, seus invólucros dourados.  Lá em cima, nos galhos das árvores, agora me lembro, as danadinhas, ou melhor, os danadinhos, estridulavam para atrair as fêmeas.

Melhor ter como respaldo a ciência que desfaz superstições, lança certa luz sobre os mistérios e ciclos vitais da natureza. E é a ciência, também, que, ao meu entendimento, mais enobrece as cigarras, seres que das masmorras, da escuridão, de anos, anseiam pela luz, sofrem metamorfoses, e, na fase final, de breves dias, cantam, cantam, para a glória final da perpetuação de sua espécie, do amor. Na realidade, um canto ensurdecedor a longo prazo, proveniente de seus tímbalos  com  potentes decibéis.

É fato, também, que, ao contrário da fábula, esses insetos, na longa fase de ninfas, buscam incansavelmente por raízes para sua subsistência, jamais recorrendo às formigas, na penúria invernal, à procura de alimento E que estas, as formiguinhas,  coitadas, cegamente farejam alguma comida para levar à chefona, uma espécie de eminência parda, a rainha reprodutora, sempre oculta no formigueiro. Transportam, das cigarras, as carcaças, mas parecem ser duras, surdas a qualquer acontecimento que possa desviá-las da rota da subsistência. 

Talvez por isso, pela abordagem das necessidades eternas do homem, de pão e arte, a fábula de Esopo ainda seja tão pertinente, atual.  Outro dia vi um vídeo pelo Youtube, Le chant des cigales (O canto das cigarras), estória de Thomas Szabo, que mostrava formigas carregando alimentos, dia após dia, com o fundo musical desse canto. As trabalhadeiras pareciam alheias a tudo, devotamente concentradas no trabalho, como os escravos egípcios à sombra do faraó.  Cena após cena, no vídeo, o mesmo quadro enfadonho, e o canto daqueles insetos solto no ar. Apenas uma dessas formiguinhas sempre se detinha por um instante para ouvir, alcançando depois o bando. No final dessa fábula visual, ela junta-se à trupe das cigarras, passando a assoviar em harmonioso concerto com elas.  Maravilhosa releitura da antiga fábula, onde a formiga liberta-se do sistema coletivo, opressor, e percebe-se indivíduo, sob a égide, a leveza da arte.

Fernando Campanella      


terça-feira, 9 de abril de 2013

ANTÍQUA

Fotos por Fernando Campanella


Ali, entre os juncais,
a face de um deus esquecido
reverberava na tarde.
- Tua alma é antiga, junta-te a nós -
chamavam me os juncos, e tremiam
ao meu silêncio - um vento
que eriçava a memória da água.

Fernando Campanella

 

quarta-feira, 3 de abril de 2013

ELO ENCONTRADO

Foto original de Jane Nahabedian do cartão postal que recebi,
fotografado e editado por mim. *



“Não caminhe atrás de mim, eu posso não liderar. Não caminhe na minha frente, eu posso não seguir. Simplesmente caminhe ao meu lado e seja meu amigo.”
(Albert Camus)

Às vezes me quedo em certo alheamento do mundo, espécie de mínima entropia, não com um sentimento de tristeza que nos torna amargos e fechados ao novo. Um recolhimento vago, necessário, até saudável, quando apenas a memória afetiva me fala. 

Retiro, então, da gaveta, antigos cartões postais (tenho o hábito de guardá-los) e neles reencontro as palavras, o carinho, de amigos distantes que em algum momento de suas vidas, não importa quão longe estivessem, lembraram-se de mim, e me escreveram. E atingiram meu coração com suave flecha iluminada.

Tenho agora em mãos, e na memória mais grata, dois desses cartões, os quais em momentos solitários de minha vida chegaram-me de amigos que se encontravam em outros países e lembraram-se de mim.

Num deles, de um grande amigo estilista, destaco o trecho: “... o frio é intenso, e a chuva constante atrapalha minhas andanças. Ontem fiquei um tempão parado na Champs Elysées, abrigado da chuva. Mas o que poderia tornar-se um inconveniente, transformou-se em pura magia com as folhas que caíam em movimentos espirados, a água nas largas calçadas refletindo as luzes de decoração natalina, o vai-e-vem das pessoas em seus modelões variados, uma babel de cores e raças, e me peguei refletindo sobre muitas coisas. E agradeci a Deus por tudo que tem me proporcionado, e entre tantos agradecimentos um dos mais importantes foi ele ter colocado você na minha vida. Acho que nunca te falei, mas eu te amo com o mais sincero amor de um amigo...”

Outro cartão, de uma querida ex-professora de literatura inglesa, em alguns trechos dizia: “... E o tempo passou, não respondi sua carta, mas não esqueci; pensei em você, e em mandar-lhe este cartão, a semana inteira... Veja o muro, ou cerca de pedra, de que Robert Frost fala em seu poema Mending Wall na foto deste cartão que te envio...” A minha amiga não sabia que o Mending Wall era um de meus poemas favoritos do Frost.

Esses dois amigos já não mais no mundo se encontram. Mas sejam eles, os que já foram, ou os ainda presentes, na convivência física, os virtuais, trazidos pelos novos meios de comunicação, os poetas que lemos, ou até mesmo bichos e árvores, amigos transcendem as horas. São filamentos, extensões de anjos que abraçam a terra de polo a polo,  por cuja mediação e presença “nossos ombros suportam o mundo” - o elo” achado” na escala da evolução.

Fernando Campanella

Observação: a foto acima foi tirada por mim do cartão (foto original de Jane Nahabedian), que recebi de minha amiga, ex-professora de literatura inglesa, em 1996 quando ela visitou Connecticut. Coloquei o foco nos muros de pedra (stonewalls), aos quais Robert Frost faz referência em seu belíssimo poema "Reparando o muro" (Mending Wall)

Vídeo: segundo movimento da Sinfonia do Novo Mundo, por Dvorak, enviado pela DublinPhilarmonic:





terça-feira, 26 de março de 2013

COTIDIANOS

http://images.uncyc.org/pt/6/6c/Ist2_6205981-magic-hat.jpg
Imagem encontrada no site: DESCICLOPÉDIA


Reencontro em uma loja uma conhecida que há tempos não via. Pergunto-lhe, por educação, sobre o lugar onde atualmente mora. O que obtenho como resposta é uma série de críticas sobre minha cidade: a sujeira, a mendicância, as crateras abertas pelas chuvas nas ruas.

Entro depois em um banco com aquelas impressões negativas fervilhando em minha mente. Precisava retirar um talão de cheques e a fila na segunda-feira estava superlativa, extrapolando as linhas demarcatórias no chão, tomando até a escada de acesso àquele andar. A cidade onde minha conhecida hoje vive deve ser mesmo um “trem bom demais da conta” - pensei - pois lá inexistiriam filas quilométricas nos bancos, nos supermercados, como as daqui.  Eu teria que me aguentar por uns quarenta minutos naquela câmara de tortura, sem reclamar.

Haveria algum meio de amenizar aquela espera e o mau-humor incipiente? Pensei em um motivo, um material para uma crônica. Mas como extrair daquele emaranhado de rostos anônimos um gancho, uma história?

Escreveu Fernando Sabino: “... Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um...”. Essa, a alma da crônica. Mas parecia impossível encontrar naquele estabelecimento comercial, naquelas pessoas com suas conversas e seus celulares que a todo instante tocavam, a minha oportuna inspiração.

Eu corria os olhos por aquele labirinto de faces e gestos, buscando algo – e nada! Passei, de novo, o olhar, cautelosamente, e um garoto me chamou a atenção. Devia ter uns dez anos, estava com uma mulher que parecia ser sua mãe. Usava um boné com a aba curvada, para trás, uma calça jeans, uma camiseta azul e tênis preto. Um menino comum, porém com alegria e vivacidade nos olhos, na maneira com que gesticulava, conversando com a senhora. Eu queria ouvir o que dizia, descobrir o porquê daquele entusiasmo. Mas ele se encontrava longe de mim.

Passei, então, a observá-lo, apurando os sentidos, como um animal à caça. Era uma questão de vida ou aborto de minha crônica. Tentei me acalmar com a expectativa de que quando nos encontrássemos, frente a frente, eu poderia escutar a conversa e abocanhar o meu relato do cotidiano.

Aguardei, e o acompanhava de longe. A mulher parecia, de vez em quando, ler algo para ele, de um papel que tinha nas mãos. Os dois ludicamente se comunicavam.

Na disciplina de focar minha atenção, o tempo disparou. As campainhas dos caixas deviam estar tocando freneticamente, chamando os clientes, mas eu não as ouvia. Até que chegou o momento ansiado, eu e eles, frente a frente. Coloquei-me em alerta máximo, meus ouvidos como um gravador ultra-sensível, oculto em um formigueiro.

Embora tão perto, havia ainda uma estática. Redobrei a atenção. E revelou-se o motivo de toda aquela euforia. A senhora tomava do menino, como se tomavam as tabuadas antigamente, os pronomes pessoais e de tratamento escritos numa folha de caderno, preparando-o, talvez, para algum exame de Língua Portuguesa do colégio. Perguntava-lhe agora sobre a forma de tratamento para os papas, ao que ele respondia: Vossa Excelência; ela corrigia, dizendo: errou, é Vossa Santidade. Depois, tomando o papel das mãos da mulher, o garoto perguntou a ela qual era a segunda pessoa do plural dos pronomes do caso reto, ela errou, riram... E se distraíam naquela elástica cumplicidade.

Contagiado daquela leveza, como um antigo mágico, tirei alguns coelhos de minha cartola: restaurei minha cidade, esqueci o mau humor, ganhei minha crônica.     


Fernando Campanella

Egberto Gismonti, Maracatu, youtube enviado por thegiomas2

  


terça-feira, 19 de março de 2013

CADÊ A MÃE?

Foto por Fernando Campanella


Outro dia, ouvi o termo “bagageiro”, referente a uma carroça transportando pessoas numa pequena cidade aqui da região, e foi como se um eco de algo longínquo houvesse batido em mim. Esse vocábulo  traz a semântica da minha infância, a sépia das fotografias de meus avós, de um velho retrato de Minas guardado nos meandros da memória.

A palavra foi pronunciada por um dos membros de uma família que viera da roça às compras naquela cidadezinha. E aquela cena, dos pais e cinco filhos naquele veículo, era tão evocativa, tão plena de significados, que merecia uma foto.  Eu trazia comigo uma câmera de bolso e perguntei aos pais se poderia tirar um retrato deles, da família inteira, ali juntinhos.



Para minha  alegria, consentiram. E como já haviam apeado, retornaram a seus assentos no bagageiro para se organizarem.
Com a intenção de conseguir uma imagem mais natural possível, conversei com eles, indagando sobre onde moravam, o que produziam ou plantavam, o que faziam ali, e coisas assim,  para distraí-los e registrá-los  no melhor momento, sem as estereotipadas  poses de álbuns de família.
Durante a conversa, com o visor em mira, fiz três fotos do grupo.  Em seguida, ao olhar na pequena tela da câmera para ver o resultado, espantei-me  quando não vi a mãe em nenhuma das imagens. Que falta de atenção aos detalhes, pensei, como é que eu não havia percebido aquilo na hora do enquadramento?
- Cadê a mãe? – perguntei-lhes, decepcionado – ela não aparece aqui.
Um dos meninos desatou  a rir, cutucou o outro... E  foi uma gargalhada geral.
- Ela escondeu atrás do bagageiro– respondeu uma das garotas, timidamente, tampando os olhos com a mão.  
E não foi mesmo que a senhora estava lá, escondidinha atrás de uma das rodas.  Após a filha “entregá-la”  ela se levantou um tanto embaraçada, com ar de poucos amigos, dizendo-me que não gostava de sair em fotos. Respeitei  sua decisão, não  lhe pedindo que se juntasse à família para nova rodada de imagens.
Por sorte, a senhora havia se ocultado tão bem que realmente não deu pra perceber seu vestígio na foto baixada em meu computador.  Por outro lado, lamentei o fato de ela não ter aparecido  no quadro de tão bela família, embora, cá entre eu e eles, soubéssemos que de alguma maneira ela se encontrava ali.
Eu me senti como um antigo fotógrafo lambe-lambe ao registrar aquela cena da família, pioneiro, desbravando a vida essencial das ruas, das praças e dos campos de antigamente. Na contramarcha da modernidade, a Minas do meu retrato, de sua gente simples, dos bagageiros, das bodegas e capelas, estava ali, inteira, com toda dureza  e ternura, seu espírito circunspecto, recatado,  povoando as calçadas e estradinhas de chão batido de seu interiorzão.
Fernando Campanella