Tão antiga a lenda da cigarra e a
formiga, atribuída ao lendário Esopo, recontada por La Fontaine em várias
traduções mundo a fora. E eu nunca vi uma cigarra ao vivo. Só escuto seu
estridular infindo que às vezes vem martelar em meus tímpanos no verão.
Das onipresentes formigas, estou
exausto: desfilam em intermináveis procissões atrás das sobras da cozinha, de
outros cômodos da casa, obrigando-me a uma quase obsessão com a limpeza, penso
duas vezes antes de tomar um café em meu quarto, em frente ao computador, no
momento em que escrevo esta crônica.
Nunca vi uma cigarra ao vivo, ou
melhor, outro dia, quase as vi, agarradas no tronco de uma árvores, inúmeras,
douradas, com seus ferrões como estiletes, assemelhando-se a escaravelhos de
ouro. Pequenos seres em estranheza e mistério, a despertar antigo pavor em mim. Douradas, secas, e mortas.
Ocas, no tronco somente suas cascas ou invólucros.
Em meu vergonhoso desconhecimento
desses bichos, imaginei-as tendo morrido, ali, subindo os troncos, devoradas
pelas implacáveis formigas, só lhes restando a carcaça. Haviam morrido de tanto
cantar, dizia-me meu lado poeta. Mas minha porção investigativa falou mais
alto, fui às enciclopédias descobrir sobre o comportamento desses mitológicos
insetos.
Ah, então as cigarras põem seus
ovos em troncos de árvores, os quais eclodem em ninfas que descem ao subsolo,
ali vivendo, na escuridão, por anos. Depois, ainda ninfas, retornam ao ar,
subindo pelos troncos, e se desfazem dos exoesqueletos, tornando-se adultas, em um processo denominado “ecdise”,
ou “muda”.
As cigarras que observei haviam me enganado. Não estavam mortas, nem secas. O que eu presenciara
foram suas “casacas”, seus invólucros dourados.
Lá em cima, nos galhos das árvores, agora me lembro, as danadinhas, ou
melhor, os danadinhos, estridulavam para atrair as fêmeas.
Melhor ter como respaldo a
ciência que desfaz superstições, lança certa luz sobre os mistérios e ciclos
vitais da natureza. E é a ciência, também, que, ao meu entendimento, mais
enobrece as cigarras, seres que das masmorras, da escuridão, de anos, anseiam
pela luz, sofrem metamorfoses, e, na fase final, de breves dias, cantam,
cantam, para a glória final da perpetuação de sua espécie, do amor. Na
realidade, um canto ensurdecedor a longo prazo, proveniente de seus tímbalos com
potentes decibéis.
É fato, também, que, ao contrário
da fábula, esses insetos, na longa fase de ninfas, buscam incansavelmente por
raízes para sua subsistência, jamais recorrendo às formigas, na penúria
invernal, à procura de alimento E que estas, as formiguinhas, coitadas, cegamente farejam alguma comida para levar à chefona, uma espécie de eminência parda, a rainha reprodutora,
sempre oculta no formigueiro. Transportam, das cigarras, as carcaças, mas
parecem ser duras, surdas a qualquer acontecimento que possa desviá-las da rota
da subsistência.
Talvez por isso, pela abordagem
das necessidades eternas do homem, de pão e arte, a fábula de Esopo ainda seja
tão pertinente, atual. Outro dia vi um
vídeo pelo Youtube, Le chant des cigales
(O canto das cigarras), estória de Thomas Szabo, que mostrava formigas
carregando alimentos, dia após dia, com o fundo musical desse canto. As
trabalhadeiras pareciam alheias a tudo, devotamente concentradas no trabalho,
como os escravos egípcios à sombra do faraó. Cena após cena, no vídeo, o mesmo quadro
enfadonho, e o canto daqueles insetos solto no ar. Apenas uma dessas
formiguinhas sempre se detinha por um instante para ouvir, alcançando depois o
bando. No final dessa fábula visual, ela junta-se à trupe das cigarras, passando
a assoviar em harmonioso concerto com elas. Maravilhosa releitura da antiga fábula, onde a
formiga liberta-se do sistema coletivo, opressor, e percebe-se indivíduo, sob a
égide, a leveza da arte.
Ali, entre os juncais, a face de um deus esquecido reverberava na tarde. - Tua alma é antiga, junta-te a nós - chamavam me os juncos, e tremiam ao meu silêncio - um vento que eriçava a memória da água. Fernando Campanella
Foto original de Jane Nahabedian do cartão postal que recebi,
fotografado e editado por mim. *
“Não caminhe atrás de mim, eu posso não liderar. Não caminhe na minha
frente, eu posso não seguir. Simplesmente caminhe ao meu lado e seja meu
amigo.”
(Albert Camus)
Às vezes me quedo em certo alheamento do mundo, espécie de mínima
entropia, não com um sentimento de tristeza que nos torna amargos e fechados ao
novo. Um recolhimento vago, necessário, até saudável, quando apenas a memória afetiva me fala.
Retiro, então, da gaveta, antigos cartões postais (tenho o hábito de
guardá-los) e neles reencontro as palavras, o carinho, de amigos distantes que
em algum momento de suas vidas, não importa quão longe estivessem, lembraram-se
de mim, e me escreveram. E atingiram meu coração com suave flecha iluminada.
Tenho agora em mãos, e na memória mais grata, dois desses cartões, os
quais em momentos solitários de minha vida chegaram-me de amigos que se
encontravam em outros países e lembraram-se de mim.
Num deles, de um grande amigo estilista, destaco o trecho: “... o frio é
intenso, e a chuva constante atrapalha minhas andanças. Ontem fiquei um tempão
parado na Champs Elysées, abrigado da chuva. Mas o que poderia tornar-se um
inconveniente, transformou-se em pura magia com as folhas que caíam em
movimentos espirados, a água nas largas calçadas refletindo as luzes de
decoração natalina, o vai-e-vem das pessoas em seus modelões variados, uma
babel de cores e raças, e me peguei refletindo sobre muitas coisas. E agradeci
a Deus por tudo que tem me proporcionado, e entre tantos agradecimentos um dos
mais importantes foi ele ter colocado você na minha vida. Acho que nunca te
falei, mas eu te amo com o mais sincero amor de um amigo...”
Outro cartão, de uma querida ex-professora de literatura inglesa, em
alguns trechos dizia: “... E o tempo passou, não respondi sua carta, mas não esqueci; pensei em você,
e em mandar-lhe este cartão, a semana inteira... Veja o muro, ou cerca de
pedra, de que Robert Frost fala em seu poema Mending Wall na foto deste cartão
que te envio...” A minha amiga não sabia que o Mending Wall era um de meus
poemas favoritos do Frost.
Esses dois amigos já não mais no mundo se encontram. Mas sejam eles, os
que já foram, ou os ainda presentes, na convivência física, os virtuais,
trazidos pelos novos meios de comunicação, os poetas que lemos, ou até mesmo
bichos e árvores, amigos transcendem as horas. São filamentos, extensões de
anjos que abraçam a terra de polo a polo, por cuja mediação e presença “nossos
ombros suportam o mundo” - o elo” achado” na escala da evolução.
Fernando Campanella
Observação: a foto acima foi tirada por mim do cartão (foto original de Jane Nahabedian), que recebi de minha amiga, ex-professora de literatura inglesa, em 1996 quando ela visitou Connecticut. Coloquei o foco nos muros de pedra (stonewalls), aos quais Robert Frost faz referência em seu belíssimo poema "Reparando o muro" (Mending Wall) Vídeo: segundo movimento da Sinfonia do Novo Mundo, por Dvorak, enviado pela DublinPhilarmonic:
http://images.uncyc.org/pt/6/6c/Ist2_6205981-magic-hat.jpg
Imagem encontrada no site: DESCICLOPÉDIA
Reencontro em uma loja uma conhecida que há tempos não
via. Pergunto-lhe, por educação, sobre o lugar onde atualmente mora. O que
obtenho como resposta é uma série de críticas sobre minha cidade: a sujeira, a
mendicância, as crateras abertas pelas chuvas nas ruas.
Entro depois em um banco com aquelas impressões negativas
fervilhando em minha mente. Precisava retirar um talão de cheques e a fila na
segunda-feira estava superlativa, extrapolando as linhas demarcatórias no chão,
tomando até a escada de acesso àquele andar. A cidade onde minha conhecida hoje
vive deve ser mesmo um “trem bom demais da conta” - pensei - pois lá inexistiriam filas
quilométricas nos bancos, nos supermercados, como as daqui. Eu teria que me aguentar por uns quarenta
minutos naquela câmara de tortura, sem reclamar.
Haveria algum meio de amenizar aquela espera e o
mau-humor incipiente? Pensei em um motivo, um material para uma crônica. Mas
como extrair daquele emaranhado de rostos anônimos um gancho, uma história?
Escreveu Fernando Sabino: “... Gostaria de estar
inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do
irrisório no cotidiano de cada um...”. Essa, a alma da crônica. Mas parecia
impossível encontrar naquele estabelecimento comercial, naquelas pessoas com
suas conversas e seus celulares que a todo instante tocavam, a minha oportuna inspiração.
Eu corria os olhos por aquele labirinto de faces e
gestos, buscando algo – e nada! Passei, de novo, o olhar, cautelosamente, e um
garoto me chamou a atenção. Devia ter uns dez anos, estava com uma mulher que
parecia ser sua mãe. Usava um boné com a aba curvada, para trás, uma calça
jeans, uma camiseta azul e tênis preto. Um menino comum, porém com alegria e
vivacidade nos olhos, na maneira com que gesticulava, conversando com a
senhora. Eu queria ouvir o que dizia, descobrir o porquê daquele entusiasmo.
Mas ele se encontrava longe de mim.
Passei, então, a observá-lo, apurando os sentidos, como
um animal à caça. Era uma questão de vida ou aborto de minha crônica. Tentei me
acalmar com a expectativa de que quando nos encontrássemos, frente a frente, eu
poderia escutar a conversa e abocanhar o meu relato do cotidiano.
Aguardei, e o acompanhava de longe. A mulher parecia, de
vez em quando, ler algo para ele, de um papel que tinha nas mãos. Os dois
ludicamente se comunicavam.
Na disciplina de focar minha atenção, o tempo disparou.
As campainhas dos caixas deviam estar tocando freneticamente, chamando os
clientes, mas eu não as ouvia. Até que chegou o momento ansiado, eu e eles,
frente a frente. Coloquei-me em alerta máximo, meus ouvidos como um gravador
ultra-sensível, oculto em um formigueiro.
Embora tão perto, havia ainda uma estática. Redobrei a
atenção. E revelou-se o motivo de toda aquela euforia. A senhora tomava do
menino, como se tomavam as tabuadas antigamente, os pronomes pessoais e de
tratamento escritos numa folha de caderno, preparando-o, talvez, para algum
exame de Língua Portuguesa do colégio. Perguntava-lhe agora sobre a forma de
tratamento para os papas, ao que ele respondia: Vossa Excelência; ela corrigia,
dizendo: errou, é Vossa Santidade. Depois, tomando o papel das mãos da mulher,
o garoto perguntou a ela qual era a segunda pessoa do plural dos pronomes do
caso reto, ela errou, riram... E se distraíam naquela elástica cumplicidade.
Contagiado daquela leveza, como um antigo mágico, tirei alguns
coelhos de minha cartola: restaurei minha cidade, esqueci o mau humor, ganhei
minha crônica.
Fernando Campanella Egberto Gismonti, Maracatu, youtube enviado por thegiomas2
Outro dia, ouvi o termo
“bagageiro”, referente a uma carroça transportando pessoas numa pequena cidade
aqui da região, e foi como se um eco de algo longínquo
houvesse batido em mim. Esse vocábulo
traz a semântica da minha infância, a sépia das fotografias de meus
avós, de um velho retrato de Minas guardado nos meandros da memória. A palavra foi pronunciada por um dos membros
de uma família que viera da roça às compras naquela cidadezinha. E aquela cena,
dos pais e cinco filhos naquele veículo, era tão evocativa, tão plena de
significados, que merecia uma foto. Eu
trazia comigo uma câmera de bolso e perguntei aos pais se poderia tirar um
retrato deles, da família inteira, ali juntinhos.
Para
minha alegria, consentiram. E como já
haviam apeado, retornaram a seus assentos no bagageiro para se organizarem.
Com a
intenção de conseguir uma imagem mais natural possível, conversei com eles,
indagando sobre onde moravam, o que produziam ou plantavam, o que faziam ali, e
coisas assim, para distraí-los e
registrá-los no melhor momento, sem as
estereotipadas poses de álbuns de
família.
Durante
a conversa, com o visor em mira, fiz três fotos do grupo. Em seguida, ao olhar na pequena tela da
câmera para ver o resultado, espantei-me
quando não vi a mãe em nenhuma das imagens. Que falta de atenção aos
detalhes, pensei, como é que eu não havia percebido aquilo na hora do
enquadramento?
- Cadê
a mãe? – perguntei-lhes, decepcionado – ela não aparece aqui.
Um
dos meninos desatou a rir, cutucou o
outro... E foi uma gargalhada geral.
- Ela
escondeu atrás do bagageiro– respondeu uma das garotas, timidamente, tampando
os olhos com a mão.
E não
foi mesmo que a senhora estava lá, escondidinha atrás de uma das rodas. Após a filha “entregá-la” ela se levantou um tanto embaraçada, com ar de
poucos amigos, dizendo-me que não gostava de sair em fotos. Respeitei sua decisão, não lhe pedindo que se juntasse à família para
nova rodada de imagens.
Por
sorte, a senhora havia se ocultado tão bem que realmente não deu pra perceber
seu vestígio na foto baixada em meu computador.
Por outro lado, lamentei o fato de ela não ter aparecido no quadro de tão bela família, embora, cá
entre eu e eles, soubéssemos que de alguma maneira ela se encontrava ali.
Eu me
senti como um antigo fotógrafo lambe-lambe ao registrar aquela cena da família, pioneiro, desbravando a vida essencial das ruas, das praças e dos campos de
antigamente. Na contramarcha da modernidade, a Minas do meu retrato, de sua
gente simples, dos bagageiros, das bodegas e capelas, estava ali, inteira, com
toda dureza e ternura, seu espírito
circunspecto, recatado, povoando as
calçadas e estradinhas de chão batido de seu interiorzão.