domingo, 28 de fevereiro de 2010

VERSOS E OBOÉ PARA CECÍLIA


Foto by Fernando Campanella

CANÇÃO DA TARDE NO CAMPO

(Cecília Meireles)



Caminho do campo verde,

estrada depois de estrada.
Cercas de flores, palmeiras,
serra azul, água calada.

Eu ando sozinha
no meio do vale.
Mas a tarde é minha.

Meus pés vão pisando a terra
que é a imagem da minha vida:
tão vazia mas tão bela,
tão certa, mas tão perdida.

Eu ando sozinha por cima das pedras.
Mas a flor é minha.

Os meus passos no caminho
são como os passos da lua:
vou chegando, vais fugindo,
minha alma é a sombra da tua.

Eu ando sozinha
por dentro dos bosques.
Mas a fonte é minha.

De tanto olhar para longe,
não vejo o que passa perto.
Subo monte, desço monte,
meu peito é puro deserto.

Eu ando sozinha
ao longo da noite.
Mas a estrela é minha.


Minha amiga Dione enviou-me o poema de Cecília, acima, há alguns dias, eu não o conhecia. Eu acabara de chegar de um sítio onde havia tirado várias fotos da região e ao ler o poema logo o associei a uma das fotos (acima) , fruto do mesmo andar solitário, do mesmo sentimento. E mais a descoberta da tarde, árvores, montes e pedras, e o prenúncio da estrela da noite. Faltaram-me apenas as belas palavras de Cecília nesse poema que eu gostaria de ter escrito.

Cecília, eterna, está presente em toda minha trajetória poética. Assim, além da imagem do vale na foto, dedico também a ela um poema escrito por mim em 1992, e um trecho do 'Concerto para oboé e orquestra de cordas, de Mozart', ambos abaixo.
E agradeço à minha grande amiga Dione por ter me enviado o poema.

VERSOS PARA CECÍLIA

Mesmo se tomasse por empréstimo
tua metáfora quando em mim pousam
leves teus versos, não a poderia tornar minha
que tão íntimo e próprio é meu silêncio
e meu ser vai disperso por outros ventos.

Posso sentir tua beleza recolhida e doce
no que evidente se mostra e no que se intui
na arquitetura sonora de teus versos.

O resto repousa na chave supra-humana
dos enigmas. Por isso também escrevo,
mais nada.
FernandoCampanella

Acredito que Cecília tenha ouvido o 'Concerto Número Para Oboé KV 314' de Mozart (trecho abaixo) o qual tem toda força e beleza de obras criadas na solidão contemplativa, como os versos de nossa grande poeta.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

PÁSSAROS


(Maria-branca, pássaro da família
dos Tyrannídeos)
Foto by Fernando Campanella

A primavera de New England
não traz seus pássaros à minha janela.
Mas por que penso naqueles cantos
se nem os pássaros de meu velho rio
ou de minhas conhecidas árvores
vêm ao meu jardim cantar?


Só cantam para si próprios,

o martim- pescador, a corrila ,
o joão-de-barro atribulado.


Pensando melhor, nem mesmo pardais,
nenhum pio, nenhum bemol acasalado
conseguem meu dia despertar.
Ficam por si, longínquos, os canários
e os bem-te-vis nas cercanias .


Como é triste acordar

daquelas ternuras surdo, descantado.
como é áspero raspar do dia o aço.
ranger roldanas de hábitos e ossos.

Cantem para si, para Deus
ou para quem os consiga ouvir
o exótico 'robin' , o cuco e a cotovia.
Nenhum trinado, nenhum grasnar,
vêm alcançar meus ouvidos ruidosos.


Ah, vejam, sou mesmo um rei nu,
um moedor de pedras,
sou aquele imperador da China
que tão pobre era sem seu pássaro -
aquele pobre mandarim ,
a solidão, meu triste rabicho,
a ausência, esta enorme vassala de mim.



Fernando Campanella, 2007






Obs. Meu primeiro contato com a música desta postagem, Blackbird´ (vídeo acima) dos Beatles, deu-se somente há alguns meses atrás, acredito que não tenha sido tão tocada na fase áurea do grupo inglês.


Sempre intuí algum ressoo erudito na música de Paul MacCartney/John Lennon. 'Penny lane', por exemplo, traz uma certa estrutura 'clássica' por trás de seus belos acordes. E 'Blackbird', não fica atrás. Hoje li que Paul revelou ter se inspirado, de alguma maneira, no 'Boureé em mi menor', de Bach, para a idéia da música.


(Abaixo, uma gravação mais livre do 'Boureé em mi menor', de Bach, com Jethro Tull)



Blackbird foi gravada em 1968, canção do álbum 'The Beatles'. A letra da música, segundo o autor, é uma metáfora sobre a condição da mulher afro-americana nos Estados Unidos à época. O canto ao pássaro seria um estímulo à raça para lutar pelos seus direitos.

O grande valor de uma obra de arte, porém, é que ela se abre a infinitas leituras. O 'blackbird', por extensão, é o pássaro preso, ou a escura ausência do mesmo, em nós. Clama pela liberdade de sermos o que somos, de nos expressarmos, encontrando nosso caminho no mundo. Na canção de Paul MacCartney canta esse pássaro, tão humanamente eterno, manifestação legítima e libertária de toda arte.



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

ANTíQUA


Foto by Fernando Campanella

Meu coração tem o lirismo rude
das charnecas (acridoce palavra).
Chegam os ceifeiros e o cortam,
arrancam –lhe capins e piolhos
mas traz a teimosia,
a suave resistência dos restolhos
(bela palavra).

Tosa-me o tempo ,
retrocedo, tudo me desaba
mas o que me podam é o que cresço.


Fernando Campanella



Há momentos de uma certa melancolia em mim. Não é algo avassalador, que possa inibir-me as fontes da vida, da alegria. É como o cair de uma chuva, uma sonoridade antiga de pingos nos telhados, um ar frio, e a alma querendo abrigo.

São momentos de interiorização, de uma solidão aliada ao espírito da arte para um certo concerto do mundo. Hoje, reencontro John Dowland, o músico, alaudista, inglês da Renascença, que traz a melancolia em suas obras. Em uma de suas mais famosas canções, 'Flow my tears', seus versos dizem:

"Flow my tears, fall from your springs,
Exiled for ever let me mourn
Where night's black bird her sad infamy sings,
There let me forlorn.."

Tradução aproximada:

"Desçam, minhas lágrimas, caiam de suas fontes,
Exilado para sempre, deixem-me lamentar
Onde a sombria ave noturna seus males canta,
Lá solitário deixem-me ficar..."

John Dowland


(Ouçam no youtube a peça escolhida de John Dowland para esta postagem, 'Lady Clifiton's spirit)




São nesses momentos de interiorização que buscamos a melhor companhia. Dowland é um mais que feliz reencontro.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

DANÇANDO


Foto by Fernando Campanella

Enfuno meus versos
e os imagino fragatas
sobre o mar.

Pode mais a bailarina.

- Ave, menina,
já aprendeste a voar.

Fernando Campanella

Vídeo para esta postagem, 'Ciranda da Bailarina, de Chico Buarque e Edu Lobo:

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

CAIXAS


Foto by Fernando Campanella

Poemas são caixas
que se abrem em dedos,
aos poucos se povoam recantos
de leve se iluminam segredos.

Fernando Campanella


Obs. Agradeço à minha grande amiga Leila Laderzi, responsável pela formatação dos cabeçalhos deste blog, contribuindo com um toque de beleza a este espaço. A música desta postagem, 'Ladies in Lavender', vídeo abaixo, foi enviada a mim por sua alma, suas mãos.
Obrigado, dearest.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

IMAGEM DO DIA (REVOADA)


Foto by Fernando Campanella

A súbita visão daquele redemoinho de centenas , talvez milhares, de aves no céu, no final da tarde, foi algo que beirou o numinoso. Elas passavam, em voo baixo, em gigantescos bandos, frenéticas, e retornavam. O ruflar das asas, a aproximação da noite e a percepção de minha solidão inteira dentro da vibração selvagem ecoaram em mim um remoto mistério, um pavor, a princípio. Porém, pude vislumbrar a maravilha de um reino maior, que desencadeia as forças da criação, que à nossa história, a nossos enredos, subjaz.

Fernando Campanella


Vídeo para esta postagem: 'The birds', by Jerry Goldsmith.



"Aceite tudo a respeito de si próprio - quero dizer, tudo. Você é você e isso é o princípio e o final - sem pedidos de desculpa, sem arrependimentos." - Clark Moustakas, tradução de Fernando Campanella.

"Accept everything about yourself - I mean everything, You are you and that is the beginning and the end - no apologies, no regrets."--Clark Moustakas

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

TO THE NIGHT


Foto by Fernando Campanella

This huge imponderable silence
revives dead things
by casting its charms
upon the light.

Time to sedate,
to overflow the glasses
with moon's fluids -
and here's to the night.

Fernando Campanella

O poema acima surgiu de uma inspiração após ler um poema de Wallace Stevens, enviado hoje por minha grande amiga Maria Madalena. Foi escrito assim, em inglês, e encontrei uma certa dificuldade em vertê-lo para nossa língua. Estou postando, abaixo, uma versão um tanto quanto apressada do mesmo, passível de reconstrução, para passar uma idéia de seu conteúdo.


À NOITE


Este silêncio,
vasto e imponderável,
revive as coisas mortas
atraindo a luz
em sua corte.

Tempo de sedar,
de transbordar as taças
com fluídos de lua -
e de brindar à noite.

Fernando Campanella


Ouçam o youtube da música escolhida para esta postagem, a 'Dead things' by Philip Glass:



Obs. Os poemas que escrevo em inglês, bem raros, por alguma razão inconsciente sempre giram em esferas temáticas de luz/sombra. Talvez a língua inglesa seja para mim um idioma que melhor expresse a minha porção romântica, noturna.
Abaixo, o poema de Wallace Stevens, enviado por minha amiga, a quem agradeço pelas pérolas que encontra.

Valley Candle


My candle burned alone in an immense valley.
Beams of the huge night converged upon it,
Until the wind blew.
The beams of the huge night
Converged upon its image,
Until the wind blew.

Wallace Stevens (1879 - 1955 / Pennsylvania / United States)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

EFEMÉRIDES (FEVEREIRO)


Foto by Fernando Campanella

Fevereiro entre dois amores:
quaresmeiras e manacás.

O roxo pode ser amor primeiro
mas arrasto asas ao branco,
ao violáceo, ao lilás.

Fernando Campanella

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ÂNGULOS & TEMPOS




Distantes...



Um no outro, tocando-se...




Crescendo juntos...

(... tuas asas errantes, ave cara,
ainda fazem de meus rochedos
a sua mais noturna morada...)

Trecho do poema 'Avis cara'
by Fernando Campanella

(Fotos by Fernando Campanella)



Vídeo da postagem, Kitaro, Meditation, bamboo chines flute:

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

MY QUINTESSENTIAL BLUES


Foto do blog:


vou arrancar os sapatos
e ouvir
meu blues quintessenciado

vou despir-me de humores
e escapar, asas em som,
pelos portais dos sentidos
pelos desvãos do telhado

- não me lembrem do mundo agora
ele já me entope os poros
a cada esquina
e satura a pele feito pólipo -


vou desfazer bagagens
armar a noite em blue

e ser assim alteridade
a mim imune
um corpo estranho
um vagalume

Fernando Campanella



Vídeo da postagem, 'Lover man', Billie Holiday: