quarta-feira, 26 de maio de 2010

EMILY DICKINSON, DIÁLOGO & TRADUÇÃO


Foto by Fernando Campanella

quantas mortes incorporo
- sobrevida -
para palpar a leveza
de uma folha caída

(Poema inspirado pelo poema
de Emily Dickinson, abaixo, por Fernando Campanella)

Há uma certa inclinação da luz
em tardes invernais
que oprime como o peso
dos tons dos hinos nas catedrais.

Celestial ferida nos impõe,
nenhuma cicatriz incita
salvo interna diferença
onde o significado habita.

Ninguém nada pode lhe ensinar,
ela é o selo-desespero,
uma aflição imperiosa
enviada a nós do ar.

Quando chega, a paisagem atenta,
as sombras cessam o respirar,
quando parte, é como a distância
no olhar da morte a se alongar.

(Emily Dickinson, tradução de Fernando Campanella)

Dedico a Emily esta peça do compositor britânico Henry Purcell (1659-1695), The Hole in the Wall.




There’s a Certain Slant of Light,
Winter Afternoons —
That oppresses, like the Heft
Of cathedral Tunes —
Heavenly Hurt it gives us — 5
We can find no scar,
But internal difference,
Where the Meanings, are — None may teach it — Any —
’Tis the Seal Despair — 10
An imperial affliction
Sent us of the Air —
When it comes, the Landscape listens —
Shadows — hold their breath —
When it goes, ’tis like the Distance 15
On the look of Death —

(There's a certain slant of light, Emily Dickinson)


domingo, 23 de maio de 2010

ASSIM PASSA... (SIC TRANSIT...)


Foto by Fernando Campanella


...E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate)...

(T. S. Eliot, trecho de 'A terra desolada',
tradução de Ivan Junqueira)


e quando dei por mim
vi um molusco
arrastando nos ombros
o tempo da casa

vi um monge rondando em ócio
- o hábito
a chama
e a mariposa alucinada

folhas caducas
espectros
(os ecos, os ecos)
a roda tocada à memória -

vi a turbulências das moscas -
a lava
e a concha sonhando a asa -

quando cheguei ao limbo de mim
e o vento seguiu
senti um abandono
e uma distância sem fim

pesei o silêncio
e o mundo certo
que perdi

vi a pedra chamando a água

Fernando Campanella, 2006


quarta-feira, 19 de maio de 2010

NOTURNO


Pintura de Jean Hey- Maitre de Moulins
'A virgem em glória rodeada por anjos'
(1489/99), Notre Dame, Moulins
273 × 320 - 37k - jpg - 4.bp.blogspot.com/.../s320/maitredesmou

Senhora de meus tormentos,
duras noites me impuseste,

embala tua criança,
dá-me de teu colo
a endorfina que amanhece.

Fernando Campanella, 2006.


sábado, 15 de maio de 2010

SINE QUA NON (HINO AO SOL)


Pôr do sol nos contrafortes da Serra da Mantiqueira
Foto by Fernando Campanella

Ah, este instante na tarde
quando o sol bate seu ponto
e se despede
de um afugentar as sombras
de mais um dia de claro ofício.

Pago, pelos préstimos,

ao operário 'sine qua non'
com a moeda de meus sonhos
um certo dourar de meus sentidos.

Logo à noite vou desejar

que no outro dia retorne
que nunca me deixe sem seu brilho.

Posso então a alma estendida

ressonar: a luz, eu sei,
em seu percurso também me busca
e sempre haverá de me achar.


Fernando Campanella, maio de 2007.




Segundo Édouard Schuré, em sua obra 'Os grandes iniciados', o 'Salmo 104' do Antigo Testamento "é uma adaptação poética do 'Hino ao Sol' de Amenófis IV (Akhenaton), faraó do Egito à época de Moisés'.
Abaixo, trechos do Hino ao Sol, de Akhenaton, e do salmo 104, de Davi.

...Quando tu te vais em paz ao horizonte ocidental,
A terra fica na escuridão como morta
Os que dormem encontram-se em suas camas,
As cabeças cobertas com mantas,
Um olho não vê o outro.
Se roubassem seus bens que se acham debaixo de suas cabeças,
Eles nem perceberiam.
Todos os leões saem de suas cavernas;
Todas as serpentes, elas mordem...
Jaz a terra em silêncio.
Seu criador repousa no horizonte...

('Hino ao Sol', Akhenaton)

...Designou a lua para marcar as estações; o sol sabe a hora do seu ocaso.
Fazes as trevas, e vem a noite, na qual saem todos os animais da selva.
Os leões novos os animais bramam pela presa, e de Deus buscam o seu sustento...

(Salmo 104, Davi)


segunda-feira, 10 de maio de 2010

NOVELOS


Foto by Fernando Campanella


ora dois flamingos bordados
ora teias despidas de luz
teus olhos lembram tramas
e desfechos -
infinito costurar e desfazer
da paixão

o azul que me chama na tarde
logo são galhos que entrançam
labirintos por onde enredo

teus olhos que me adentram
- estes novelos dispersos

Fernando Campanella


terça-feira, 4 de maio de 2010

EFEMÉRIDES (MAIO)


Foto by Fernando Campanella


Conheces o país onde florescem as laranjeiras?
Ardem na escura fronde os frutos de ouro...
Para lá, para lá eu quisera ir.
(Goethe)

Dom de maio -
laranjeiras em flor.
Chegam os noivos em asas.

É quando o amor
me estonteia os sentidos
e delicados perfumes têm cor.

Fernando Campanella

Vídeo escolhido para esta postagem: Milton Araújo e grupo, com o ótimo, estonteante, 'Flor de Laranjeira'

domingo, 2 de maio de 2010

DÚBIO


Foto by Fernando Campanella

Um dia, alma criança,
ao vento indaguei a idade
e foi o tempo de meus ouvidos
o que obtive como verdade.

Do sol, a mesma questão lançada,
como solução veio-me o tempo
de meus olhos, de minha pele
ao calor e à luz exposta.

Estranhas, dúbias respostas:
o universo a um estalar de minha finitude
então se desmancha, e passa?

Ou trago, dos cumes da criação,
de tudo que brota, rebrota,
a mais irrestrita,
a mais eterna proposta?

Fernando Campanella, Fevereiro de 2008.

Poesia também nasce de circunstâncias, de acontecimentos. O poema acima veio-me após um acidente, uma situação quase limítrofe. Em uma viagem, o carro, desgovernado, chocou-se contra um barranco e capotou. Perdi a consciência por uns dez minutos segundo as pessoas que nos socorreram.

Naqueles minutos desacordado, meu eu, minhas emoções, o universo, tudo perdeu existência. Mas era uma fase feliz a que eu vivia. Se tudo findasse para mim naqueles momentos, findaria em plenitude, e eu nem saberia.

O carro teve que ser guinchado. No retorno à cidade mais próxima, no táxi providenciado pela companhia de seguros, tirei ainda algumas fotos (uma delas acima). Nunca eu vislumbrara o entardecer tão belo como naquele dia, ou talvez eu o estivesse enxergando com os olhos de uma criança em início de contemplação do mundo, e agradecendo pelo que via.

Escolhi para esta postagem uma das músicas que tocava no rádio do carro antes do acidente, 'Bend and Break', uma de minhas preferidas. A banda Keane, com o vocalista Tom Chaplin, faz parte da novíssima geração de astros pops britânicos de grande sensibilidade, ao lado da Coldplay, que, com uma roupagem moderna em suas canções, são mais um elo na corrente do romantismo eterno.