quinta-feira, 20 de novembro de 2014

POLÍTICA NACIONAL, EMPREITEIRAS E CARAVELAS

Foto por Fernando Campanella

Mário de Oliveira Filho, advogado do lobista Fernando Soares, o Fernando Baiano, um dos 24 presos na Operação Lava Jato, diz que NÃO SE FAZ OBRA PÚBLICA NO BRASIL SEM "ACERTO" e quem nega isso "desconhece a história do país".

E diz ainda, segundo a Folha de São Paulo:
"O empresário, se porventura faz alguma composição ilícita com o político para pagar alguma coisa, se ele não fizer não tem obra. Pode pegar qualquer empreiteirinha e prefeitura do interior do país. Se não fizer acerto, não COLOCA UM PARALELEPÍPEDO NO CHÃO."

(Mario de Oliveira Filho, advogado. Reportagem da Folha de São Paulo)


Francamente, não sei por que ando tão assustado com as revelações da operação Lava a Jato. Será que nós, brasileiros, inocentemente, não suspeitávamos (sabíamos) disso tudo? Ou que sabíamos e fazíamos vista grossa, ou não forçávamos a barra para abrir a boca, ou, então, calavam nossas bocas?

Em 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o jornalista Paulo Francis, no programa de TV de que participava, em Nova Iorque, o Manhattan Connection, denunciou que havia um esquema de grande roubalheira na Petrobrás, que todos os diretores da estatal tinham contas na Suíça. O presidente da empresa na época, o sr. Joel Rennó, moveu um processo milionário contra Francis, e que talvez tenha levado o jornalista a uma morte por ataque cardíaco meses depois.

Sabíamos, ou não, que havia algo de podre no reino da Petrobrás?


Se é para moralizar mesmo, apartidariamente, deveriam retroceder as investigações do "lava-jatismo", até chegarem á origem da corrupção na estatal. (Nem que fosse para uma justiça póstuma a Paulo Francis.) O país sairia ganhando, e plena justiça seria feita.  

Acrescente-se ao exposto acima que as grandes empresas de infraestrutura do Brasil não surgiram na década passada e que, certamente, não foram corrompidas, ou corromperam, ou ambos, em conluio, apenas nas gestões do PT. Vejamos as datas de fundação de algumas delas, mencionadas nas delações:

QUEIRÓS GALVÃO - 1953, CAMARGO CORREA - 1939, MENDES JUNIOR - 1953, ANDRADE GUTIERREZ - 1954/55, ODEBRECHT - 1944, OAS , a caçula da construção civil no Brasil, mas mesmo assim criada em 1976.

Em que pesem a eficiência e a qualidade dos serviços prestados por tais empresas, inclusive no exterior, convenhamos, somos algozes e vítimas da má política. E, usando uma expressão mais vulgar, mas muito apropriada, o buraco deve ser mais embaixo, ou , no caso, mais antigo, caso contrário, não haveria pobreza e miséria de tão longa data no país. 

E será que não sabemos dessa cultura política tão nefasta a que o advogado Mário de Oliveira Filho se refere no início do texto?

Há algo de podre em toda política nacional? Mas, política é mesmo assim, segundo o senso comum, e é melhor nela não se envolver?

Outro dia li em um jornal uma piada, desconheço o autor, que dizia até as construção das caravelas de Cabral terem envolvido licitações fraudulentas, com muita propina repartida. Ri muito, mas o negócio é sério demais. A democracia está aí. Ou nos conscientizamos, ou tudo continua na mesma.

Fernando Campanella



sexta-feira, 10 de outubro de 2014

NOVELOS



Ora dois flamingos bordados, 
ora teias despidas de luz,
teus olhos lembram tramas
e desfechos - infinito costurar
e desfazer da paixão. 

O azul que me chama na tarde
logo são galhos que entrançam -
labirintos por onde enredo -

teus olhos que me adentram, 
esses novelos dispersos. 

Fernando Campanella

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

"ANTHONY ADVERSE"

Meu pai, foto tirada por mim. 


Meu pai, em seus momentos de ternura, tem me chamado de "Antoní Adverso". Meu nome completo é Antonio Fernando, nascido em 13 de junho, dia de Santo Antonio. Minha família me chamava de Toninho em minha infância,  mas a partir do primeiro grau na escola assumi o nome de Fernando. 

Mas, Antoní Adverso? Por que meu pai, com 93 anos de idade, vem me chamando assim ultimamente, brincando? (Coloquei acento no "ni" porque ele pronuncia a palavra como uma oxítona). 

Após seu banho ontem, ele repetiu o "apelido" carinhoso. Sua cuidadora  perguntou-lhe por que me chamava dessa maneira e ele respondeu: porque ele é contrário a mim. Rimos todos e ela tomou minha defesa dizendo-lhe que eu estava do lado dele, não contra. 

Bom, ontem decidi encontrar a razão desse "Antoní Adverso", intuindo que de algum lugar deveria ter vindo tal denominação. E graças à internet tive a resposta. Trata-se do nome de um filme norte-americano, de 1936, dirigindo por Mervyn LeRoy, com Olivia de Havilland no elenco. Baseado em novela homônima, o épico em preto e branco foi uma super produção para os padrões da época, indicado ao Oscar de melhor filme do ano, mas vencedor do prêmio em algumas outras categorias. No Brasil recebeu o nome de "Adversidade". 

Meu pai, com quinze anos de idade na época, deve ter assistido a esse filme, uma vez que era apaixonado por cinema. 

As coisas realmente não vêm do nada. A memória afetiva está sempre presente, como renitente farol,  mesmo quando os neurônios castigam e endurecem os idosos. Foi uma agradável surpresa para mim descobrir a razão do "Antoní Adverso", apesar de o adjetivo trazer uma conotação de "contra", "contrário".
Mas, como minha amiga Helen Drummond sabiamente comentou após ler minha crônica, "O amor é sempre doce e suave. Algumas asperezas (adversos?) acontecem apenas para lhe extrair o sumo". 

E como uma homenagem à terceira, melhor, idade, ao meu pai, aos avós e bisavós, a todos que já viveram, ou ainda vivem, uma longa história, deixo aqui uma reflexão que encontrei no site da UOL:

"Os idosos não são uma categoria à parte, todos nós continuamos a nos desenvolver, envelhecemos dia após dia e aos jovens cabe saber que devemos oferecer o carinho a atenção aos mais velhos. O mundo está pronto para os jovens porque existiram outros jovens que hoje estão em outra fase da vida, a velhice. E ela um dia nos terá. É inevitável o curso da vida."

Fernando Campanella   

   Parte da trilha sonora e vídeo promocional do filme de 1936                                        

https://www.youtube.com/watch?v=Ss7ONnzv--U


 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

SINE QUA NON



Ah, este instante na tarde
quando o sol bate seu ponto
e se despede
de um afugentar as sombras,
de mais um dia de claro ofício. 
Pago pelos préstimos
ao operário sine qua non
com a moeda de meus sonhos,
um certo dourar de meus sentidos. 
Logo à noite vou desejar
que no outro dia retorne,
que nunca me deixe sem seu brilho. 
Posso então, a alma estendida, ressonar:
a luz, eu sei, em seu percurso também
me busca, e sempre haverá de me achar. 

Fernando Campanella



quinta-feira, 4 de setembro de 2014

UM HAIKAI

Foto por Fernando Campanella


O sol entre nuvens
piados de bentevis:
primavera em mim.


Fernando Campanella



domingo, 27 de julho de 2014

DANÇA DAS HORAS

Foto por Fernando Campanella


O velho pêndulo da sala
tiquetaqueia a vida
para além do mecanismo das horas.
Traz levezas, alegres algaravias -
asas de borboletas - entremeadas a ruídos
das mais secas, dolorosas matracas.
Quando nascemos, são júbilos e sinos,
ao partirmos - ranger de ossos -
são traques - catracas -

quem sabe, enfim, o silêncio -

a tua voz que desincorpora -
mas um vulto sempre lhe dá cordas
e o velho pêndulo da sala não para. 

Fernando Campanella


quinta-feira, 17 de julho de 2014

CASA À ENTRADA DO LAGO

Foto por Fernando Campanella

Esta luz por sobre a velha casa
transpôs o dia, desmancha a tarde.
Como aves de longo alcance
meus olhos requerem distância
e percorrem a longa, aérea 
trilha deixada. 
Não me lembrem agora que caminhos 
apenas conduzem a caminhos 

que labirintos sempre me trazem 
de volta, ao mesmo lugar - mais nada.

Fernando Campanella


quarta-feira, 9 de julho de 2014

"VEXAME" NACIONAL

Foto por Fernando Campanella

Levantei hoje como após um pesadelo, sentindo a derrota da nossa seleção para a Alemanha. Mas logo lembrei que haviam batido à porta da minha casa algumas horas antes, às quinze pras cinco da manhã. Batidas fortes, insistentes, que me acordaram. Fui olhar pela janela da sala (nao tenho interfone) e eram policiais perguntando se aqui morava um vizinho meu. Desculparam-se e me disseram que precisavam informar a ele, o vizinho, que haviam prendido os assaltantes de seu estabelecimento comercial. O assalto, fiquei sabendo depois, havia ocorrido após o término do jogo de ontem.

Tenho que passar no escritório da CEMIG (Centrais Elétricas de Minas Gerais) para reclamar que há três meses a conta de luz não chega à minha casa, meu direito de consumidor. E infinitas pequenas coisas para administrar no meu dia, com um tempinho para editar minhas fotos e postar esta crônica aqui. 

Não vou mais pensar na derrota, decidi. Está mais que na hora de pendurar as chuteiras deste ópio tão cegante, tão manipulado, que é o nosso futebol. Afinal, nenhum membro da seleção perderá seus contratos, seus milhões. A FIFA arrecadou milhões também, e quem for campeão nesta Copa vai ter seus dias de glória, como já tivemos, as redes sociais vão continuar ridicularizando nosso "vexame"... Além disso, há preocupações mais urgentes, como as sócio-econômicas, as referentes à Educação e Saúde públicas, à violência, e (escrevam) à chuva que não vem, escassa em níveis alarmantes, com a perspectiva de um racionamento de água e energia nunca visto antes no Sudeste. 

Cá entre nós, esses problemas tão mais sérios, cruciais, o partidarismo nacional não soluciona. (É aquele eterno blablablá de farpas mútuas, conchavos vergonhosos, demagogia e corrupção.) Nem o futebol. Mas, como disse um amigo, vamos continuar hasteando a bandeira nacional nas instituições, nas casas, nos carros, dentro de nós. Foram atos execráveis os que vi pelos noticiários de torcedores queimando nosso símbolo mais sagrado, vital. Deu vontade de  dizer a eles - companheiros, expressem toda esta indignação nas urnas, não confundam nação com futebol.    Afinal, com ou sem este, e sem a vitória na Copa, temos uma Pátria, precisamos dela, e ela precisa de nós. 

Fernando Campanella  




sábado, 21 de junho de 2014

AMÉM




E Deus rogou as pragas –
capituvas, trevos, ora-pro-nóbis...

Após as chuvas
um sapo estufa
e a vida estica.

Um pardal corteja
a flor conspícua
da tiririca.

Fernando Campanella



domingo, 25 de maio de 2014

POEMAS ANTIGOS



Já viste a alma presa
no cálice de tua mão?
Não validemos tal dor,
no cômputo total
ela não vai além de uma gota,
um suspiro de orvalho
sacrificado ao ar. 
Ao universo nada importa,
tudo traz o selo da perfeição.
Não choro -
mas como queria de vós, 
Natureza, uma tal isenção.

(Fernando Campanella, 1986)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

AS AVES DO CÉU

Foto por Fernando Campanella 

"As raposas têm as tocas e as aves dos céus, ninhos; mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça." (Mateus, 8,20)


...Tarde de maio, teu espelho me afaga -
e as aves sonolentas retornam à casa.

(Final do poema Vias Errantes, por Fernando Campanella)




sexta-feira, 16 de maio de 2014

O PAI



O pai me chamou na sala e perguntou: cadê tua mãe? 

A mãe? - perguntei, em resposta, com incredulidade e espanto, pois já haviam se passado quase doze anos desde o falecimento dela.

Outro dia eu pensara em como os neurônios castigam, amargam a longevidade, pela própria perda deles, ou outros fatores, mas hoje, diante da pergunta de meu pai, na dureza e glória de seus 93 anos,  consegui perceber um veio de ternura em sua voz. Momento de solo absoluto, em que o touro, frágil, torna-se ave, e a memória faz seu ninho. Indagar por alguém que já partira há tantos anos, como se a presença física da pessoa amada, com quem convivera por bem mais de meio século, ainda rondasse os aposentos da casa, e sua voz se fizesse ouvir da varanda, da cozinha, é algo, no mínimo, resplandecente, rompendo os grilhões de ferrugem, a tirania dos hábitos, dos medos que a solidão procria.

- A mãe? Ela está parte no céu, parte aqui conosco - acrescentei - reze por ela.

No final de nosso diálogo, meu pai, em tocante desamparo, disse-me que estava perdendo a memória. Arrematou que orava pela esposa diariamente. E não estava sendo demagogo, não estava mentindo: várias noites antes de ele se deitar, sem que me visse, eu o observara fazer o sinal da cruz diante  do antigo porta retrato em seu quarto. Então tomava-o nas mãos, beijava a imagem dela, dizendo baixinho: minha eterna companheira.

Os seres, embora imbuídos em categorias e espécies, desde as casas que habitamos, as árvores, as flores, os animais de estimação, até os nossos entes queridos, são únicos, insubstituíveis, mas passei a mão no cabelo branco de meu pai como para dizer: eu estou aqui, mesmo com toda ausência, toda falta que o senhor possa sofrer. E  o senti mais leve, pois de alguma maneira eu intuía que a mãe estava ali entre nós.

Fernando Campanella 





segunda-feira, 12 de maio de 2014

ESTAÇÃO



As pontes de ferro desativadas
evocam refugos e traças,
são naves caducas, ex-órbitas,
são marias que viraram fumaça. 

A velha ordem se rompe,
parabólicas acolhem a pax americana.
A estação da memória resiste
mas já é Minas fossilizando. 

(Fernando Campanella)


quinta-feira, 1 de maio de 2014

AS CORES DO MUNDO

Foto por Fernando Campanella

Quando vejo a imagem acima com a belíssima luz que realçou as cores da terra, do céu, da árvore, da casinha naquele final de tarde, me espanto pensando sobre algo tão óbvio à ciência, ou seja, que a as cores das coisas na realidade não existem, a não ser pela interação de nossos olhos, ferramentas com as quais o cérebro cria o campo visual, com a luz.

Embora nossa visão possa ser ampliada por instrumentos cada 
vez mais sofisticados, criados ao longo da civilização, das lupas, telescópios, microscópios a aparelhos de ressonância magnética, etc., a percepção a olho nu ainda nos surpreende e nos encanta. E justiça seja feita à câmera fotográfica que consegue imprimir essas belezas que o mundo nos concede.

"Faça-se a luz", disse Deus, diluindo as trevas, ao criar o vasto mundo que nos hospedaria. Talvez naquele instante tenha também surgido toda nossa predestinação à arte.

(Fernando Campanella)   


 


quarta-feira, 9 de abril de 2014

LÓTUS

Foto por Fernando Campanella

O amor raciocina em sete línguas. 
(Fernando Campanella)





segunda-feira, 24 de março de 2014

PARQUE DAS EMAS

Foto por Fernando Campanella


Não façais mal nem à terra, nem às plantas
Nem às águas...
(Apocalipse)

Acordei no meio da noite, e vi o dia,
dia mais avesso que o miolo das trevas
quando os inocentes da terra choravam,
as flores enrustiam o perfume
e o vinho amargava o sabor.

Os cavalos vermelhos desordenavam
a paz da terra, debandavam as rolas,
disparavam loucas as emas.

Promessas de novas proles não se cumpriam
que os ninhos eram cinzas por palhas
e os ovos, um a um derretiam.

As falanges do fogo consumiam a obra,
calcinavam as ervas, não distinguiam
as montanhas do domínio das águas –
onde era natural majestade, desintegravam,
onde fossem líquidas relíquias, secariam.

Nunca se vira por estas paragens
dor tão intensa e democrática, castigando
desde as ninfas, desfeitas de seus reinos,
até as baleias, de suas águas desmembradas.

Os inocentes da terra choravam
por impotentes e frágeis
diante de tão cruel, definitiva ceifa.

Antes fossem apenas delírios de profetas
o que o livro dos tempos anunciara.

Antes ficasse somente em imagem
a horda de criminosos das glebas
a desfilar com fardas em chamas
e bocas de vômito incandescente.

(O espírito do fogo consome a obra,
sua língua profana lambe e devasta,
seus dentes não deixarão grão sobre grão.)

Fernando Campanella, 1988



sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

SILÊNCIO MARINHO

Foto por Fernando Campanella


"...Mas escuta, ó meu coração, o canto dos marujos!"

(Mallarmé)


Não sou um homem de cartas marcadas,
o destino, vulgo sorte, fez-me à parte,
não me quis.
Tranquei-me em chaves desde a infância
e onde as deixei, esqueci.
Na contramão das grandes rotas, não demarquei
terras, não publiquei um livro, não amealhei
títulos ou troféus -

não me mudei quando jovem para Nova Iorque
não me viu a TV, nem me fisgaram
os olhos oblíquos dos jornais.

Semeando em campos tão áridos, que cansaço
trazem as glórias do mundo, a mim, que delas fugi,
e nunca as colhi. 

Somos dois? Somos tantos, companheiros?
Embebedemo-nos de nosso infortúnio
até o fastio, até sangrarmos, pois

e dobremos os lenços, desbravando o silêncio,
dos elos fortuitos, das graças modestas,
que vem do mar. 

 Fernando Campanella

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

COM A MEDIDA DO BONFIM

Foto por Fernando Campanella

A moça na janela
não usa brinco de pérola
mas também atrai pelo olhar
toda alma de artista 

é da Bahia, traz na voz
o molejo dos Nagôs
e no pulso direito
a fitinha do Bonfim.

Que destino lhe aguarda?
Vender água de coco pra turistas
como sua avó 
ou tapioca pelas ruas
como a tia?

(Desde os tempos de criança
tem um desejo - me diz querer
ser pintora, ou ampliar seu universo 
na arte da fotografia.)

A moça na janela...

Que Oxum regue a branca rosa de seu peito. 
Que o Senhor de todos os santos 
vele por seus sonhos, e preserve um tal sorriso -
que é dos simples - de menina -
que, eu que parto, guardo comigo, levo dela.

Fernando Campanella




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

RESPONSU

Foto por Fernando Campanella

Naquela estradinha de terra que me levava ao Pantano dos Rosa, Zé Grandão, em sua carroça, levando silagem ao gado, com o cigarro de palha na boca, deteve-se em seu trajeto e contou-me por quase um par de horas um tanto da história de sua vida. 

A certa altura, disse-me:

- Minha madrinha tem responsu com Santa Luzia.

- Responso? - perguntei.

- É, responsu. Quando tem uns pobrema dos bravu comigo, qui num consigo resolvê, vou na casa dela, tomo a bênção e mostru a fechadura. Ela reza então pra santa, no altarzinho da sala, se sacodi em tremura e me diz: "Pode ir, meu fio, tudo se ajeita, o que é pro teu bem já tá marcadu."

E completou:

- E eu sempri encontrei a chavi.

(Fernando Campanella)


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O LIVRO DE CESÁRIO VERDE

Fotos por Fernando Campanella

A dor humana busca os amplos horizontes
E tem marés, de fel, como um sinistro mar.
(Cesário Verde)

(Crônica dedicada ao meu amigo fotógrafo e poeta Warllem Silva)
É tão revigorante fecharmos os olhos às vezes, lembrando-nos de alguma viagem de nossos sonhos, realizada e completa, algo fora, bem longe, da sucessão de nossos costumes e hábitos.
Quando cerramos as pálpebras, é aquela memória grata que nos vivifica. Minha ida a Arraial D’Ajuda, Bahia, foi uma dessas viagens, o lugar ideal, com as pessoas e os passeios certos, tudo parecendo ter sido planejado para a mais intensa e feliz fruição.
Eu poderia descrever as maravilhas daquela semana no sul da Bahia, apresentando um registro cronológico de tudo que conheci, dos sabores, aromas e cores que vivi, restaurantes, praias e centros históricos por onde passei, mas não tenho o hábito para a escrita de diários, ou folders de companhias de turismo.
Assim, bem além da cinematografia daquelas horas vividas, e não descuidando da importância das emoções, alegres emoções, partilhadas com amigos, é a poesia, sobretudo uma modesta reflexão sobre o valor dos poetas, o que me motiva a escrever.
No último dia de nossa viagem, visitamos um sebo em Porto Seguro. Um local muito aprazível, com seus livros meticulosamente organizados, e um espaço, com decoração clássica e aconchegante, para café.
Após entrarmos à livraria, um grande amigo fotógrafo, anfitrião de minha estadia em Arraial, deteve-se diante de uma estante na seção de poesias, logo encontrando o livro “Mensagem” de Fernando Pessoa, o qual comprou.  Até aí, tudo normal, mas meu amigo também adquiriu “O Livro de Cesário Verde”, o que me deixou, mais que surpreso, maravilhado.
Comprar um livro do Pessoa, tão renomado, embora para poucos, enquadra-se nas preferências de quem gosta de poesia. Quanto ao livro do Cesário Verde, poeta, cujas criações foram desprezados pela crítica de sua época, mas louvado por Pessoa, que apreciou, "além da sensibilidade e beleza de seus versos, a sua extrema lucidez da visão do mundo", já se torna mais raro, bem mais raro, comprá-lo.
Meu amigo, além de exímio fotógrafo, é também poeta. Daí talvez se justifique aquela descrição "...é um poeta para poetas", aplicada, neste caso, a Cesário Verde. Ao vê-lo adquirir o livo, lembrei-me imediatamente de um poema de Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, que em um trecho nos diz:
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os ohos
O livro de Cesário Verde...
(Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, poema III)
Eis, assim, o poder, a continuação da poesia, mesmo a de autores menos conhecidos, visto que  que os poetas se buscam, se entendem, e mutuamente se inspiram. Gratificante, saber que Cesário Verde, obscuro à mídia, ao grande público, possa ser procurado, e lido, mais de cem anos após seu falecimento. E como não desejar que alguém, talvez um poeta, também leia meus versos, em algum sebo, futuramente, quando eu já não me encontrar “no quadro sucessivo das imagens externas / a que chamamos o mundo”, nos versos de Álvaro de Campos. Se houver ainda sebos.
Fernando Campanella 




domingo, 12 de janeiro de 2014

ENTRE POLOS

Foto por Fernando Campanella

Há uma luz que incide em nossos corpos,
às vezes vaga, às vezes lume,
às vezes arco que constela de cores
as vias tortuosas de nossa estrada. 
Se enfrentei os mastodontes da noite
e minha armadura, ainda assim, 
revestiu-se de nada, eu me rendo:
esta luz que oscila entre nossos polos,
ora magra, ora vasta, é ganho, é graça -

desenha-me um azul no glaciar da alma
e me retrata. 

Fernando Campanella