Na chuva falava-me a louca ''meu marido me diz que não valhouma cabaça d'água'' e juntava as mãos em concha, rindo a não mais poder. E dançava, gritando ''vai cum Deus meu fio'' quando dela me afastei. Sob aquelas águas quis dizer-lhe algo, uma expressão que ouvira na infãncia, ''não valemos mais que um fumo picado'' mas apenas voltei -me e lhe acenei com as mãos ''vamos todos cum Deus, Senhora''. Fernando Campanella
Música para esta postagem: Da trilha sonora de 'Amarcord' de Federico Felini, 'Orchestral suite' 1/3 de Nino Rota.
O vídeo acima apresenta a composição 'Dream' do músico norte-americano John Cage (1912-1992).
Segundo o site 'UOL EDUCAÇÃO', Cage, com suas concepções artísticas, rompeu com toda tradição musical. O compositor criou um sistema atonal próprio e introduziu o silêncio como parte fundamental de suas criações. Em sua peça 4'33'' , por exemplo, um pianista inicia seu concerto onde não há nenhum som. apenas o ruído ambiente, os espectadores ouvem o som que emitem.
Em 1939 criou o 'prepared piano' (piano preparado) 'em que utiliza cortiças, pedaços de madeira, de papel e outros materiais entre as cordas do piano, transformando-o numa orquestra de percussão. Criou peças de concerto também para o novo instrumento'. (Site 'UOL EDUCAÇÃO)
Aclamado por Augusto de Campos como músico-poeta-pintor, John Milton Cage teve um espírito revolucionário, investigativo, adepto do Zen-budismo, entusiasta do poeta norte-americano Walt Whitman.
Poema de Walt Whitman:
Uma criança disse, O que é a relva? trazendo um tufo em suas [mãos;
O que dizer a ela?... sei tanto quanto ela o que é relva.
Vai ver é a bandeira do meu estado de espírito,
[ tecida de uma substância de esperança verde.
Vai ver é o lenço do Senhor ,
Um presente perfumado e o lembrete derrubado por querer,
Com o nome do dono bordado num canto pra
[que possamos ver e examinar , e dizer
É seu?
(Walt Whitman, Canção de Mim Mesmo, trecho do 'Folhas das Relvas, tradução de Hilda Hilst)
Obs. O poema acima foi encontrado no site 'Poesia.net - Carlos Machado, 2006)
Palavras de Cage:
"Quando eu era jovem, um de meus professores costumava se queixar de que assim que eu começava uma música, já a encaminhava para o final. (...) Eu introduzi o silêncio. Eu era um solo - digamos assim - no qual o vazio podia crescer."
CANÇÃO DA TARDE NO CAMPO (Cecília Meireles) Caminho do campo verde, estrada depois de estrada. Cercas de flores, palmeiras, serra azul, água calada. Eu ando sozinha no meio do vale. Mas a tarde é minha. Meus pés vão pisando a terra que é a imagem da minha vida: tão vazia mas tão bela, tão certa, mas tão perdida. Eu ando sozinha por cima das pedras. Mas a flor é minha. Os meus passos no caminho são como os passos da lua: vou chegando, vais fugindo, minha alma é a sombra da tua. Eu ando sozinha por dentro dos bosques. Mas a fonte é minha. De tanto olhar para longe, não vejo o que passa perto. Subo monte, desço monte, meu peito é puro deserto. Eu ando sozinha ao longo da noite. Mas a estrela é minha.
Minha amiga Dione enviou-me o poema de Cecília, acima, há alguns dias, eu não o conhecia. Eu acabara de chegar de um sítio onde havia tirado várias fotos da região e ao ler o poema logo o associei a uma das fotos (acima) , fruto do mesmo andar solitário, do mesmo sentimento. E mais a descoberta da tarde, árvores, montes e pedras, e o prenúncio da estrela da noite. Faltaram-me apenas as belas palavras de Cecília nesse poema que eu gostaria de ter escrito.
Cecília, eterna, está presente em toda minha trajetória poética. Assim, além da imagem do vale na foto, dedico também a ela um poema escrito por mim em 1992, e um trecho do 'Concerto para oboé e orquestra de cordas, de Mozart', ambos abaixo.
E agradeço à minha grande amiga Dione por ter me enviado o poema.
VERSOS PARA CECÍLIA
Mesmo se tomasse por empréstimo tua metáfora quando em mim pousam leves teus versos, não a poderia tornar minha que tão íntimo e próprio é meu silêncio e meu ser vai disperso por outros ventos.
Posso sentir tua beleza recolhida e doce no que evidente se mostra e no que se intui na arquitetura sonora de teus versos.
O resto repousa na chave supra-humana dos enigmas. Por isso também escrevo, mais nada.
FernandoCampanella
Acredito que Cecília tenha ouvido o 'Concerto Número Para Oboé KV 314' de Mozart (trecho abaixo) o qual tem toda força e beleza de obras criadas na solidão contemplativa, como os versos de nossa grande poeta.
(Maria-branca, pássaro da família dos Tyrannídeos) Foto by Fernando Campanella
A primavera de New England não traz seus pássaros à minha janela. Mas por que penso naqueles cantos se nem os pássaros de meu velho rio ou de minhas conhecidas árvores vêm ao meu jardim cantar? Só cantam para si próprios, o martim- pescador, a corrila , o joão-de-barro atribulado. Pensando melhor, nem mesmo pardais, nenhum pio, nenhum bemol acasalado conseguem meu dia despertar. Ficam por si, longínquos, os canários e os bem-te-vis nas cercanias . Como é triste acordar daquelas ternuras surdo, descantado. como é áspero raspar do dia o aço. ranger roldanas de hábitos e ossos. Cantem para si, para Deus ou para quem os consiga ouvir o exótico 'robin' , o cuco e a cotovia. Nenhum trinado, nenhum grasnar, vêm alcançar meus ouvidos ruidosos. Ah, vejam, sou mesmo um rei nu, um moedor de pedras, sou aquele imperador da China que tão pobre era sem seu pássaro - aquele pobre mandarim , a solidão, meu triste rabicho, a ausência, esta enorme vassala de mim. Fernando Campanella, 2007
Obs. Meu primeiro contato com a música desta postagem, Blackbird´ (vídeo acima) dos Beatles, deu-se somente há alguns meses atrás, acredito que não tenha sido tão tocada na fase áurea do grupo inglês.
Sempre intuí algum ressoo erudito na música de Paul MacCartney/John Lennon. 'Penny lane', por exemplo, traz uma certa estrutura 'clássica' por trás de seus belos acordes. E 'Blackbird', não fica atrás. Hoje li que Paul revelou ter se inspirado, de alguma maneira, no 'Boureé em mi menor', de Bach, para a idéia da música.
(Abaixo, uma gravação mais livre do 'Boureé em mi menor', de Bach, com Jethro Tull)
Blackbird foi gravada em 1968, canção do álbum 'The Beatles'. A letra da música, segundo o autor, é uma metáfora sobre a condição da mulher afro-americana nos Estados Unidos à época. O canto ao pássaro seria um estímulo à raça para lutar pelos seus direitos.
O grande valor de uma obra de arte, porém, é que ela se abre a infinitas leituras. O 'blackbird', por extensão, é o pássaro preso, ou a escura ausência do mesmo, em nós. Clama pela liberdade de sermos o que somos, de nos expressarmos, encontrando nosso caminho no mundo. Na canção de Paul MacCartney canta esse pássaro, tão humanamente eterno, manifestação legítima e libertária de toda arte.
Meu coração tem o lirismo rude das charnecas (acridoce palavra). Chegam os ceifeiros e o cortam, arrancam –lhe capins e piolhos mas traz a teimosia, a suave resistência dos restolhos (bela palavra).
Tosa-me o tempo , retrocedo, tudo me desaba mas o que me podam é o que cresço. Fernando Campanella
Há momentos de uma certa melancolia em mim. Não é algo avassalador, que possa inibir-me as fontes da vida, da alegria. É como o cair de uma chuva, uma sonoridade antiga de pingos nos telhados, um ar frio, e a alma querendo abrigo.
São momentos de interiorização, de uma solidão aliada ao espírito da arte para um certo concerto do mundo. Hoje, reencontro John Dowland, o músico, alaudista, inglês da Renascença, que traz a melancolia em suas obras. Em uma de suas mais famosas canções, 'Flow my tears', seus versos dizem:
"Flow my tears, fall from your springs,
Exiled for ever let me mourn
Where night's black bird her sad infamy sings,
There let me forlorn.."
Tradução aproximada:
"Desçam, minhas lágrimas, caiam de suas fontes,
Exilado para sempre, deixem-me lamentar
Onde a sombria ave noturna seus males canta,
Lá solitário deixem-me ficar..."
John Dowland
(Ouçam no youtube a peça escolhida de John Dowland para esta postagem, 'Lady Clifiton's spirit)
São nesses momentos de interiorização que buscamos a melhor companhia. Dowland é um mais que feliz reencontro.
Poemas são caixas que se abrem em dedos, aos poucos se povoam recantos de leve se iluminam segredos.
Fernando Campanella
Obs. Agradeço à minha grande amiga Leila Laderzi, responsável pela formatação dos cabeçalhos deste blog, contribuindo com um toque de beleza a este espaço. A música desta postagem, 'Ladies in Lavender', vídeo abaixo, foi enviada a mim por sua alma, suas mãos. Obrigado, dearest.