quinta-feira, 5 de novembro de 2009

EFEMÉRIDES (NOVEMBRO)


Guapuruvu, foto by Fernando Campanella

Novembro lava a alma
e as flores do guapuruvu
respingam na tarde.
Logo, a lua dá o ar da graça
e entre os galhos da árvore
amorosamente se enrosca.

(Que as estrelas embalem então
a noite, e os pássaros
sonhem abóbodas iluminadas.)


Fernando Campanella

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

MEMORIAL


Foto by Fernando Campanella*


Crucifixo à porta, detalhe da casa.
Foto by Fernando Campanella*


Aqueles túmulos me contam
que meus mortos vivem comigo,
que apenas deixaram seus invólucros

por algum tronco, suas vestes
pela estrada.

Um dia cantaremos também

como as cigarras, na memória.
Fernando Campanella


* Dez anos correram desde que primeiro vi esta casa das fotos, à beira de uma estrada em Heliodora, sul de MG. De sua atmosfera, da visão do crucifixo à sua porta, brotaram apenas, na época, estes versos:

Candeeiro à beira da estrada
Paisagens de neblinas e comas
Cheiram mimos de melissa
Dormem casas sombreadas...

E o poema permaneceu assim, inacabado, por anos. Em 2006 veio o seu arremate:

Candeeiro à beira da estrada
Paisagens de neblinas e comas
Cheiram mimos de melissa
Dormem casas sombreadas
Pupilas noturnas voam.

Coração circuspecto de Minas,
Bate em noite, bate em dia,
Abre uma artéria em mim.

No sábado passado, 31/10/2009, tive a oportunidade de revisitar o local. Com minha câmera à mão, pensei que seria uma excelente oportunidade para completar com um registro fotográfico esse ciclo de minha criação.

Parece haver uma lei tácita que determina aos poetas, assim como aos artistas, em geral, não discorrerem sobre suas obras. Cabe ao leitor encontrar seu caminho no labirinto de um poema, chegando, ou não, a uma luz final. Acredito, porém, que haja alguns segredos concernentes à poiesis ( neste caso o fazer, o criar poético) que, se revelados, acrescem o encanto dos versos que se criam.


Outros segredos permanecem, e, mesmo a quem escreve, talvez nunca sejam descerrados.

Fernando Campanella




sexta-feira, 30 de outubro de 2009

SEGREDO


Foto by Antonio Carlos Januário

Imagino
que saio a pescar a luz na tarde,
meu samburá a tiracolo,
antes que os deuses do dia
atrelem as carruagens
e o sol se incline
no abismo da memória.

Mudo as pedras.

Imagino, então,
Dona Lua,
por puro encanto,
até as franjas do infinito
tecendo um halo
e capturando estrelas
no encalço.

Imagino, imagino,
e deste imaginar me reincorporo,
chispo rudes pérolas:
alucino?

Fernando Campanella, 08 de Junho de 2007

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

IMAGEM DO DIA


Foto by Fernando Campanella


... Como Minas está arraigada em mim! E ainda que sensação de estranhamento e exílio! Meus olhos se regalam de montanhas, copas de árvores, flores do mato e capins. E seguem bandos de garças, recortes brancos itinerantes contra o céu. Despejando seus últimos pingos de ouro nos pastos, o sol realiza a alquimia final do dia. E Minas resiste.

Acodem-me à mente memórias do mundo, de mim. Lembro, vivo lembrando. Mas melhor agora estancar este fluxo perpétuo de imagens, embarcar nesta solidão da quase-noite. A primeira estrela pulsa o olho neutro indecifrável.

Melhor ainda, quem sabe, trazer à alma o consolo universal do Tao:
“...E no entanto, sossega meu coração.Tu vives no seio da mãe do universo.” ...

Trecho de meu escrito 'Junto de Hermann Hesse', de 1994.

FRAGMENTOS*


Foto by Fernando Campanella

I

Haverá uma tarde
em que alguém lerá meus versos
mas neles, distraído, já não me acho.
Não uma tarde como esta
de pretensões confessas
quando tudo que fiz conta
ou não.

Ou não haverá uma tarde
para toda idiossincrasia.

II

Vou tocando meus versos
como conduziam ovelhas
os bem antigos pastores.
Alimento, toso, tranco o estábulo
e deixo uma intenção em fresta
para os olhos do mundo
para a luz-vaidade.
Mas sei que isso ainda não basta.
O sonho é mais vasto
E o infinito de mim
puxa mais embaixo.

III

Quase noite, recolho no armário
minhas ovelhas, meus versos.
Solto os músculos:
não se agüentavam mais
minhas faces.

IV

No armário , em sombra e mofo,
fiquem meus versos.
O dia me arde.

Mas quando durmo
podem sonhar em mim.

V

No jardim do recolhimento
versos são também pássaros
que às vezes vêm bicar
minha solidão povoada.


*Os versos acima são a abertura de uma série de poemas confessionais, intimistas, que intitulei 'O Eu Confesso'.


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

DOIS PÁSSAROS


Foto by Fernando Campanella

Por que faço da imagem
a pátria da minha vida?

(Fernando Campanella)

Dois pássaros voam
sobre o espelho quieto de um lago.

Seria mais visível
o que enxergo, as aves,
com meus olhos,

ou aquelas flautas moventes
que sonho
com os olhos quietos do lago?

Fernando Campanella

18.07.2007

FERNANDO PESSOA, UM POEMA*


Foto by Fernando Campanella


Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

(Fernando Pessoa, Cancioneiro)

*'Contemplo o lago mudo/ que uma brisa estremece' - versos que abrem o poema do Pessoa, e também abriram-me a poesia no início da década de setenta. Aqui, uma homenagem, com minha foto. Espero que a memória do Pessoa aprove.