Foto por Fernando Campanella |
- Tio Raimundo, um gavião
desceu no quintal e quase pegou o sabiá
na gaiola. Eita bicho malvado.
- Foi o sabiá que te dei, foi?
Tio Raimundo trouxera o
pássaro ainda filhote para o sobrinho. O bichinho caíra do ninho e seria presa
fácil de alguma cascavel. O menino o criara em uma bela gaiola com todo
carinho, alimentando-o, conversando com ele na linguagem que só a alma em
estado graça pode ter com os bichos.
Haviam se tornado grandes amigos.
- Bicho malvado o gavião, tio
– insistiu o menino.
- Não é bem assim, meu filho –
disse o tio com aquela sabedoria de quem permaneceu criança e tem um pacto secreto com a natureza,
característica que o sobrinho, ainda sem racionalizações, mais admirava no tio.
- Não é bem assim não
–insistiu o tio – nunca chame os animais de malvados, a natureza deles não é a
mesma dos homens. Vem cá, senta aqui, vou te contar uma coisa que vi, que vai
fazer você mudar esta cabecinha.
O sobrinho sentou-se bem junto do tio, e atentou os ouvidos, presa do encanto
das histórias que aquele homem sempre contava.
- Uma vez, voltando da cidade,
passei pelo sítio do João Teodoro, lá
pelas bandas do Paiolinho. Ao dobrar a curva depois da casa do João, deparei
com um fogaréu na mata, desses incêndios criminosos tão comuns por aqui, coisa de doer a alma. Parei meu carro, meio
pesaroso, sabe, pois a cena era por demais triste. Em uma árvore alta , próxima ao fogo, vi um
gavião muito compenetrado, olhando para aquela danação toda. O bicho estava triste, posso te jurar,
eu senti isso pelo jeito que olhava a mata em chamas. Deu até
vontade de chorar. Ali naquele incêndio provocado pelo João Teodoro provavelmente haviam morrido a fêmea e os filhotes em uma daquelas árvores mais altas. O gavião macho ficara sozinho,
soziinho no mundo. Quando voltava com
algum alimento para a família deve ter presenciado toda aquela desolação.
- Nossa, tio, coitado do
gavião.
- Sim, meu filho, o bicho
estava sofrendo, imagina perder toda a família naquele escarcéu de fogo... Foi
uma das cenas mais doídas que já vi na vida. Se a gente se põe no lugar daquela
ave, menino, sentindo a perda de uma família, podemos sentir o que o animal
estava sentindo.
O menino ficou em silêncio,
imaginando aquelas chamas, sentindo toda a dor do gavião.
- Mas, veja bem – continuou o
tio – agora vem a parte mais bonita da história... Alguns meses depois quando
por aquele lugar passei vi um gavião em
uma árvore junto a alguns bem-te-vis ainda filhotes. Pareciam alegres, brincalhões, atrevidamente
amigos. E pensei: como pode? Gaviões são os piratas dos ares, por todos bichos
menores temidos. Eu não tinha explicação para aquele milagre.
- Então me lembrei, só podia
ser isto: o pirata encontrara seu tesouro definitivo, uma família, ficara amigo
de um casal de bem-te-vis com seus filhotes. Fiquei ali por algum tempo,
observando e logo chegaram os pais com alimento. Tudo parecia em ordem, em paz. Eu nem acreditava no
que via...
Mais tarde, após o tio ter ido embora, ao contar aquela triste e ainda linda história
ao pai, o menino dele ouviu:
- Olha, meu filho, é bom que
você saiba, o tio Raimundo é boa pessoa mas imagina demais. Aqueles gaviões que
ficam perto do queimadas na roça são
chamados de gavião-fumaça. Ficam ali um tempão à espreita, esperando os bichos saírem em desespero para
atacar as presas. Esta estória de amizade deste bicho com os pássaros é pura
fantasia.
O menino, decepcionado, sentiu-se
bastante confuso com a explicação do pai
que já fora sitiante e entendia de bichos. Mas lembrou-se do fogo na mata, da violência do
ato e, por algo inexplicável em sua
alma, decidiu adotar a história do tio
como a mais necessária, inquestionável verdade.
Fernando Campanella, 2009.