sexta-feira, 30 de outubro de 2009

SEGREDO


Foto by Antonio Carlos Januário

Imagino
que saio a pescar a luz na tarde,
meu samburá a tiracolo,
antes que os deuses do dia
atrelem as carruagens
e o sol se incline
no abismo da memória.

Mudo as pedras.

Imagino, então,
Dona Lua,
por puro encanto,
até as franjas do infinito
tecendo um halo
e capturando estrelas
no encalço.

Imagino, imagino,
e deste imaginar me reincorporo,
chispo rudes pérolas:
alucino?

Fernando Campanella, 08 de Junho de 2007

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

IMAGEM DO DIA


Foto by Fernando Campanella


... Como Minas está arraigada em mim! E ainda que sensação de estranhamento e exílio! Meus olhos se regalam de montanhas, copas de árvores, flores do mato e capins. E seguem bandos de garças, recortes brancos itinerantes contra o céu. Despejando seus últimos pingos de ouro nos pastos, o sol realiza a alquimia final do dia. E Minas resiste.

Acodem-me à mente memórias do mundo, de mim. Lembro, vivo lembrando. Mas melhor agora estancar este fluxo perpétuo de imagens, embarcar nesta solidão da quase-noite. A primeira estrela pulsa o olho neutro indecifrável.

Melhor ainda, quem sabe, trazer à alma o consolo universal do Tao:
“...E no entanto, sossega meu coração.Tu vives no seio da mãe do universo.” ...

Trecho de meu escrito 'Junto de Hermann Hesse', de 1994.

FRAGMENTOS*


Foto by Fernando Campanella

I

Haverá uma tarde
em que alguém lerá meus versos
mas neles, distraído, já não me acho.
Não uma tarde como esta
de pretensões confessas
quando tudo que fiz conta
ou não.

Ou não haverá uma tarde
para toda idiossincrasia.

II

Vou tocando meus versos
como conduziam ovelhas
os bem antigos pastores.
Alimento, toso, tranco o estábulo
e deixo uma intenção em fresta
para os olhos do mundo
para a luz-vaidade.
Mas sei que isso ainda não basta.
O sonho é mais vasto
E o infinito de mim
puxa mais embaixo.

III

Quase noite, recolho no armário
minhas ovelhas, meus versos.
Solto os músculos:
não se agüentavam mais
minhas faces.

IV

No armário , em sombra e mofo,
fiquem meus versos.
O dia me arde.

Mas quando durmo
podem sonhar em mim.

V

No jardim do recolhimento
versos são também pássaros
que às vezes vêm bicar
minha solidão povoada.


*Os versos acima são a abertura de uma série de poemas confessionais, intimistas, que intitulei 'O Eu Confesso'.


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

DOIS PÁSSAROS


Foto by Fernando Campanella

Por que faço da imagem
a pátria da minha vida?

(Fernando Campanella)

Dois pássaros voam
sobre o espelho quieto de um lago.

Seria mais visível
o que enxergo, as aves,
com meus olhos,

ou aquelas flautas moventes
que sonho
com os olhos quietos do lago?

Fernando Campanella

18.07.2007

FERNANDO PESSOA, UM POEMA*


Foto by Fernando Campanella


Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

(Fernando Pessoa, Cancioneiro)

*'Contemplo o lago mudo/ que uma brisa estremece' - versos que abrem o poema do Pessoa, e também abriram-me a poesia no início da década de setenta. Aqui, uma homenagem, com minha foto. Espero que a memória do Pessoa aprove.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

AO SAL


Foto by Antonio Carlos Januário


"Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria."
(Pablo Neruda)


Nega-me tua alma
e ao degredo irremediável
me remetes

nega –me tua chama
que tremula no delírio dos deuses,
teu anjo, que ressona no silêncio

dos lagos, tuas asas desdobradas

nega-me, nega-me tua espuma
que regurgita no sonho das aves
(eu sou o teu infante pássaro)
e é sem minhas fontes que me deixas,
sem meu ar extasiado

nega-me teu mar, tua tempestade,
o sonho, a fantasia,
e me deixas a seco ,ao sal amargo
de cada dia.

nega-me teu olhos e já não me enxergo
que a felicidade, embora utopia das sombras,
é também certa luz incidente
que só de teu olhar
meus olhos como cúmplices recebem.

Fernando Campanella

domingo, 18 de outubro de 2009

IMAGEM DO DIA


Foto by Fernando Campanella*

"...O amor que move o sol e as outras estrelas...", escreveu Dante Aliguieri, em 'A Divina Comédia'. Esse sentimento, porém, não é invenção dos poetas ou dos místicos. Junto da sabedoria, ele habita o universal eterno.

Fernando Campanella
* Na foto acima, mãe e filha em um momento de ternura.

sábado, 17 de outubro de 2009

A UMA FLOR


Foto by Fernando Campanella


Hoje é dia de fotos.
Oh, delicada, universal vaidade,
seria impressão ou recolhes as pétalas
ocultando alguma ruga que desponta?

Mas não me respondas.
Alguns segredos melhor se guardam
no faz-de-conta.

Fernando Campanella

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

POETICES (TRÊS MOMENTOS)


http://www.agal-gz.org/blogues/media/users/poetas/20071103_poetas_CSM150.jpg

POIESIS

A poesia é algo assim
como uma dúbia certeza
aposta de um tudo
no oco intraduzível do nada

algo como a luz-menina dos olhos
entreabrindo a opacidade

sumo delicado
espremido de alegrias
e enfermidade

efemérides
e ainda um certo milagre
pérola pescada -

insípida borboleta dos dias
pela magia do verbo eterno
encantada.

Fernando Campanella

VERSOS

cansei-me de buscar-vos
tecer-vos
dourar-vos

com o mesmo afinco
com igual esmero
oh, versos
agora criai-me

Fernando Campanella

MODERNO

o poeta não é mais um deus
não tanto
porém incensado
concedamos que seja um santo
do-pau-oco
de-pé-quebrado

Fernando Campanella

terça-feira, 13 de outubro de 2009

ANTÍQUA III


Foto* by Fernando Campanella

Um eco soprava, eis , agora sei,
o que aquela sonoridade dizia:
sou o deus-memória do alheamento,
o murmúrio, uma quase voz
de um trevo, de um cogumelo ao vento,

de tua alma fendida , rebrotada -
esses ínfimos principados do silêncio.

Fernando Campanella

*As quedas d'água acima são da Cachoeira da Usina, em Natércia, sul de MG. Passei várias vezes por elas, tirei várias fotos, porém essa imagem é única. O que teria proporcionado uma beleza assim? A câmera, o período do dia, meu estado de espírito? Uma junção de todas essas variáveis, mais algo além?

Fotos são como registros de nossa memória, sinestésicos, tantas vezes: a da cachoeira acima, por exemplo, traz suave aroma, roçar de pastos, sonoridades e pausas de antigas éclogas. Um instante feliz para mim eternizado.

Fernando Campanella

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

MÍNIMA


Foto by Fernando Campanella

Sob o sol e as chuvas
o manacá se resguarda:
sombrinha de flores.

Fernando Campanella

sábado, 10 de outubro de 2009

PEROBA (?) À LUZ DA TARDE


Foto by Fernando Campanella


Em minha postagem sobre a Peroba-branca, de alguns dias atrás, relatei como vim a saber o nome de minha companheira de caminhada de longa data. Procurei identificar através de sites especializados a veracidade da informação que um pescador me passou. Realmente a àrvore da foto assemelha-se a uma Peroba.

Porém, não satisfeito, em subsequentes caminhadas continuei indagando a transeuntes no local sobre o nome da mesma. Obtive outras respostas: alguém disse tratar-se de uma Samoa Ornamental, outro, de uma Tarumã, e ainda outro, de uma Pereira.

Creio que posso descartar as possibilidades quanta a árvore em questão ser uma Tarumã, ou Pereira: as fotos que vi destas em nada condizem com a imagem da foto. Quanto à Samoa, nada encontrei sobre essa árvore, desconhecida por mim, na Internet.

Fica o impasse. Peroba? Por enquanto fico com esse nome. Uma identificação , ou até uma confirmação, sobre a mesma seriam muito bem-vindas.

Mas o mais importante é um pouco desta luz da tarde que captei sobre a árvore. Luz indecifrável diante da qual as palavras se recolhem.

Fernando Campanella

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

E O CÉU TAMBÉM


Foto by Fernando Campanella

A terra
e meus diábolos
mais o amor
que move as sombras
e me toca os lábios -

tudo isso
e o céu também.*

Fernando Campanella

*'Tudo isso e o céu também' é o título de um best-seller escrito por Rachel Field, levado ao cinema na década de 1940, com Bette Davis e Charles Boyer como protagonistas. Confesso que não vi o filme, apenas assisti a uma adaptação teatral do livro apresentada pela extinta TV Tupi, na década de sessenta. Desde minha infância ficou-me o título como uma imagem poética de amplas possibilidades.

Fernando Campanella


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

GRATIA GRATIS DATA


Foto by Fernando Campanella


"Gratia gratis data, unde et gratia nomiatur" [a graça é dada de graça, pelo que esse nome lhe é dado].

São Tomás de Aquino afirma que a graça divina é um dom gratuito, independente de nossos méritos. Santo Agostinho também insiste em que a graça não é dada pelo nosso merecimento, mas fruto da ação amorosa de Deus.

Heloisa Vilhena de Araujo, em seu estudo sobre a obra de Guimarães Rosa, pondera que o primeiro encontro de Riobaldo com Diadorim, quando ainda meninos, parece corresponder à gratia grátis data, ao auxílio da mão de Deus.
Relato de Riobaldo:

“Ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco. (...) O menino tinha me dado a mão para descer o barranco(...) Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim (Grande Sertão: Veredas,p. 80-82)”.

Gratia gratis data, expressão que, sempre me vem à mente quando contemplo minúsculas flores esquecidas, espalhadas pelos campos. Em um texto de 1994, referindo-me a estas, escrevi:

"Deus, na criação mais pesada do mundo, não se esqueceu das delicadezas, delegando responsabilidades, encarregando sensíveis jardineiros ( daimons, ou devas das flores) da distribuição destas sublimes 'inutilidades' que se espalham pela terra, gratia gratis data."

Em um contexto de tantos ‘ismos’ ( relativismo, fanatismo, tecnicismo...) essa expressão ainda nos acena como um farol. O divino , ou sagrado, ainda entreabrindo-nos as portas, ainda operando em nós.

Seja na contemplação de grandes espetáculos da natureza, ou de uma minúscula flor, como a da foto acima; seja na valorização da vida, através da arte que nos redimensiona, no amor, na ascese dos místicos, na responsabilidade social, na compaixão, na ética, enfim, que nos salva, ou na própria constatação de nossa finitude, enquanto natureza humana, em tudo Deus aderit ( se faz presente), com sua graça.

A cantora e compositora argentina, Mercedes Sosa, que faleceu no dia quatro de outubro passado, agradeceu em seus versos por essa graça da vida concedida, entenda-se por Deus:

"Graças à vida que tem me dado tanto
Me deu dois luzeiros que quando os abro
Perfeitamente distingo ...
No alto céu seu fundo estrelado..."

Fernando Campanella

Editora Mandarim. São Paulo, 1966.

Aqui, o trecho da fala de Riobaldo em seu primeiro encontro com Diadorim:

“Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. (...) Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. (...) Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não se fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira — só meu companheiro amigo desconhecido. (...) Disse que ia passear em canoa. Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco. (...) O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentante receio. Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. Eu não sabia nadar. (...) Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave ser, mas asseado e forte — assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível — o senhor represente. (...) Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim...

(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, p. 80-82)”.

sábado, 3 de outubro de 2009

EFEMÉRIDES (OUTUBRO)


Sibipiruna,
foto by Fernando Campanella

Outubro in memoriam.
Sibipirunas em flor
davam o tom.

Outubros
a premência dos ciclos
sibipirunas em reflor.

Fernando Campanella

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

IMAGENS DO DIA


Peroba-branca na manhã,
Foto by Fernando Campanella
Peroba-branca ao pôr-do-sol,
Foto by Fernando Campanella

A árvore nas fotos acima de há muito tem sido minha cúmplice em caminhadas na tarde. As árvores das fotos acima, melhor dizendo, pois são seis troncos contíguos, de uma mesma espécie, agregando o que parece ser uma única copa esplendorosa.

Gosto de vê-las principalmente no final de agosto, início de setembro, com a estação do calor já se aproximando. Ao anúncio da primavera, sob uma certa luz poente, que só as tardes desses meses concedem, elas me trazem maior identidade à alma.

Hoje, caminhando pela manhã, novamente as vejo. Já estão com folhas novas, tão verdes, tilintando à luz do sol. São belas em qualquer hora do dia, sem dúvida, e até mesmo à noite devem ter seu encanto, sob a tíbia luz do luar.

Nunca indaguei por seu nome, porém na caminhada de hoje uma curiosidade enorme desperta-se em mim a esse respeito. Prometo a mim mesmo que não terminará a manhã sem que eu descubra como se chamam.

A resposta vem de um pescador, que passa por mim em sua bicicleta. Resposta imediata, clara como algo que sempre se soubera - Peroba Branca, árvore muito boa para móveis e caibros de telhados.

Ah, as minhas companheiras de caminhadas são então Perobas, gosto muito de saber isso. Árvores muito cortadas, infelizmnte, por sua condição de madeira de lei. Parentes da Peroba-Rosa...

Mundinho, mundão... Volto para casa com a estranha sensação de sempre ter sido um estrangeiro em minha própria terra. Sou capaz de nomear certas estrelas a milhares de anos-luz da terra, indiferentes no céu , porém o nome de minhas fiéis companheiras, tão famosas, por sinal, eu desconhecia.

Em minhas futuras caminhadas, cumprimentarei vocês pelo nome, minhas Perobas -Brancas. Acredito que esse deve ser mesmo o nome, pois o senhor da informação respondeu-me tão prontamente, com detalhes, parecendo ter conhecimento de causa. Mas saibam que se fossem Aroeiras, Angicos, Guatambus, etc. , não perderiam, absolutamente, o encanto que sempre instilaram em mim.

Fernando Campanella