sábado, 28 de fevereiro de 2009

BIBLIOTECAS DA ALEXANDRIA

MODERNA


2.bp.blogspot.com/_nQ4-i5AEj1k/SXtrwgwuN5I/AA...

ANTIGA

A antiga biblioteca de Alexandria, recriação.
Do blogger:http://www.blogger.com/post-create.g?
blogID=2561563870358835690

A BIBLIOTECA NO TEMPO


Foto: São João Damasceno do blogger

Percorro as alas da biblioteca municipal e me vem à memória uma outra biblioteca, longínqua, a da minha iniciação literária. Revive , como por encanto, o adolescente que passava horas descobrindo um mundo de outros ventos.

Surgem nomes como Hoffman, Pirandello, Katherine Mansfield, e mais, muito mais, todos reunidos no “Maravilhas do conto universal”. E os primorosos fascículos, submetidos a posterior encadernação, do “Gênios da Pintura”: Bruegel, Van Gog, Fra Angélico... E, em vinil , a coleção dos compositores clássicos. Imagens de um sonho distante e ainda tão atual, a busca pelo espírito na sensibilidade e na arte.

Que fascínio a biblioteca causava e ainda hoje me causa. Que alimento torna-se a leitura para os mais sensíveis, os introvertidos. “Você que está triste e longe dos seus, leia, sempre que puder, um belo provérbio, uma poesia” dizia Hermann Hesse.

A literatura e a arte, em geral, sempre foram uma salvaguarda, um tipo de contraforte para a sustentação de meu edifício psicológico. Vozes que sempre trouxeram companhia para minha introspecção. Os livros foram, em minha infância e adolescência, uma espécie de forno onde eu me aquecia, útero a formar, lentamente, o irregular embrião de meu espírito.

As bibliotecas estão sendo digitalizadas e num futuro não muito distante livros serão apenas peças empoeiradas, esquecidas aos museus. Elas estarão em todo lugar , e em lugar algum. Teremos toda sabedoria dos tempos, toda arte, ao alcance de nossos dedos,

Melhor, pior? Diferente, talvez. O universo on line veio para ficar, para facilitar nossas vidas. Porém, nada vai apagar a importância do ofício dos copistas que preservaram toda luminosidade cultural do passado, ‘imprimindo’ livros com as próprias mãos. Nada vai desfazer a curiosidade que sentimos por uma biblioteca como a de Alexandria, pelos papiros, e pela própria invenção da imprensa.

Das brumas de meu tempo, saltam páginas e mais páginas, tomos antigos ‘na roupagem que seus séculos usavam’, como disse a poeta Emily Dickinson. A biblioteca de minha adolescência foi meu tesouro da juventude, meu mundo das mil e uma noites. Aqueles silêncios na descoberta de universos afins selaram meus anos de formação intelectual

Naquele contato com os livros eu criava tempos mais sutis, protegia minha alma de mim mesmo, do meu mundo adverso, de minha barbárie.

“ Um prazer, um prazer em mofo
É encontrar um livro antigo
em vestes que seu século usava...”
( Em uma biblioteca – Emily Dickinson , em livre tradução)

Texto por Fernando Campanella





CACASO



Foto do site 'etcetera revis
ta eletrônica de arte e cultura'

"...Mineiro de Uberaba, o poeta Antonio Carlos Ferreira de Brito (1944-1987), conhecido como Cacaso, viveu desde os onze anos no Rio de Janeiro. Cacaso estudou filosofia e lecionou teoria literária na PUC-RJ. Foi também ensaísta e letrista de música popular. Nesse último gênero foi parceiro de compositores como Edu Lobo, Francis Hime, Sueli Costa e Maurício Tapajós..."

"Jogos Florais" esboça uma crítica ao chamado milagre econômico dos anos 70 e retorna à "Canção do Exílio". O espírito da paródia e da gozação estão em toda a obra de Cacaso. O poema que originou o título da coletânea Mar de Mineiro — um título que, por si só, anuncia um conteúdo jocoso — chama-se "Fazendeiro do Mar", uma óbvia brincadeira com o Fazendeiro do Ar, de Carlos Drummond de Andrade..."

Carlos Machado , trechos de uma apresentação de Cacaso, e alguns de seus poemas, no site, Ave, Palavra, Poesia. net.
http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet199.htm



JOGOS FLORAIS I

Minha terra tem palmeiras

onde canta o tico-tico.

Enquanto isso o sabiá

vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil

ficou moderno o milagre:

a água já não vira vinho,

vira direto vinagre.

(Cacaso)


LAR DOCE LAR

Minha pátria é minha infância:

Por isso vivo no exílio.


Cacaso, de Na Corda Bamba (1978)


Cláudio Nucci, cantor e compositor, do gupo Boca Livre, também com carreira solo, interpreta trecho do "Mar de Mineiro', música com letra adaptada do poema de Cacaso.

http://mp3.mondomix.com/player.php?oid=18141&otype=1&olng=en



quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

PARATY




Paraty, fotos by Antonio Carlos
Januário.


PARATY


Paraty, foto by Antonio Carlos Januário

MAR DE MINEIRO


Foto by Antonio Carlos Januário

Um amigo envia-me, após o carnaval, algumas belas fotos que tirou de Paraty, RJ. Cidade historicamente ligada a Minas Gerais, era por suas praias que escoava o ouro de nossa região para Portugal. “Seria Minas mais com mar em Paraty?, diz um verso que fiz em um poema sobre Minas e a ressonância de seus nomes.

O que me chama a atenção em fotos que vejo dessa cidade são os reflexos de seu casario colonial em poças d’água nas ruas. Parece ser um padrão, poeticamente explorado em fotografia. Algo que me evoca Veneza, também um ideal, ou Meca, para fotógrafos amadores ou profissionais.

Valéria Vaz, fotógrafa, formada em História, com especialização em Artes Visuais, em seu blogger ‘Janelas Abertas, nos dá um explicação para tais poças que parecem ser uma constante em Paraty.

Ela nos informa: "...no início do século XVIII, devido às epidemias de cólera e febre amarela, a preocupação com a salubridade fez com que o projeto da vila de Paraty previsse que as ruas fossem feitas com uma leve curvatura para evitar vento encanado (considerado na época um transmissor de doenças), escoar água da chuva e permitir a invasão de marés mais altas como forma natural de manter a cidade limpa..."

De outras fontes, constato que, realmente , o centro histórico da cidade, com seus calçamentos irregulares, chamados 'pé de moleque', tem em suas ruas uma certa inclinação que permite o escoamento das águas da chuva e a penetração da água do mar, em períodos de maré alta. Daí, o paraíso dos reflexos, talvez um clichê, um belo clichê, para os amantes da arte das imagens.

As poças, as antigas igrejas, o casario colonial, o calçamento das ruas , tudo parece contribuir para que se registre uma atmosfera de sonho quando se visita Paraty.

E sugestivos reflexos também devem proporcionar seu mar. Porém, além da limitante geografia, e lembrando o poeta Cacaso, "... mar de mineiro é vinho/ mar de Mineiro é vão...', Paraty é o mar de mineiro, por direito e excelência, que reflete a alma de Minas Gerais.
Fernando Campanella

O FAZENDEIRO DO MAR
(DO POETA MINEIRO CACASO)
Mar de mineiro é
inho
mar de mineiro é
ão
mar de mineiro é
vinho
mar de mineiro é
vão
mar de mineiro é chão
Mar de mineiro é pinho
mar de mineiro é
pão
mar de mineiro é
ninho
mar de mineiro é não
mar de mineiro é
bão
mar de mineiro é garoa
mar de mineiro é
baião
mar de mineiro é lagoa
mar de mineiro é
balão
mar de mineiro é são
Mar de mineiro é viagem
mar de mineiro é
arte
mar de mineiro é margem
(...)
Mar de mineiro é
arroio
mar de mineiro é
zem
mar de mineiro é
aboio
mar de mineiro é nem
mar de mineiro é
em
Mar de mineiro é
aquário
mar de mineiro é
silvério
mar de mineiro é
vário
mar de mineiro é
sério
mar de mineiro é minério
Mar de mineiro é
gerais
mar de mineiro é
campinas
mar de mineiro é
Goiás
Mar de mineiro é colinas
mar de mineiro é
minas


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

BAR DE ESQUINA



Foto: Capa do disco 'Clube da esquina' foto do blogger:
1discopordiaportalrockpress.blogspot.com

http://www.youtube.com/watch?v=4RWMzcRgYsc

"Porque se chamava moço, também se chamava estrada..." O cantor inicia a apresentação da noite com 'Clube da esquina 2', uma de minhas canções preferidas da parceria de Milton Nascimento com Lô Borges e o irmão Márcio Borges.

Penso que a dedica a mim, ali sentado, porque talvez saiba, por um estranho dom de artista, como penetrar o coração dos homens e remexer ali sonhos mesclados a feridas. Mas sei que ele canta para si, para o bar como um todo, para uma audiência em potencial que divaga e toma carona na noite. E que o que canta, sobretudo, veio de alguém que num certo momento, numa certa confluência de sensibilidade e inspiração, colocou em música algo que lhe tocou a alma.


Porém, todos nós, autores, cantores, freqüentadores da noite e de uma certa embriaguez da vida , somos como donos daquela música que nos une, que nos transforma em mariposas volteando uma interna e calma luz .

Àquele som, vou rastreando um vento antigo, meus passos na contramarcha do tempo, revivendo outras décadas quando as pessoas eram também outras. Bares já apagados da história vão surgindo . E sinto como mudei, envelheci, mas meu coração ainda do tamanho daquelas épocas, pulsando naquele doce encadeamento da melodia.

Troquei de lugares, posturas. A cidade já não é a mesma, algumas pessoas já nem mais aqui se encontram. E isso, essa viagem no tempo, passa a costurar certa nostalgia dentro de mim. Quantos daqueles sonhos ainda me sonham? Quantas chamas ainda alimento para sobreviver aos fatos sempre mudando, aos palcos em que vou girando?

"Esquina mais de um milhão, quero ver então a gente, gente, gente" , diz o fim da canção. Quem ouviu sabe que é bem assim, pessoas chegam e desaparecem , temos que nos adaptar às cambiantes configurações do mundo.


Porém, quem está ali ao meu lado acompanha a música comigo, identifica-se com ela, com uma diferente carga emocional, uma disposição mais leve, talvez como um colibri que experimentasse pela primeira vez a surpresa de uma flor.

E eu retorno de minha viagem, o presente é o bar onde estou, lá fora a noite é a mesma antiga sombra respingada de estrelas, a terra neutra girando , o mundo um teimoso jovem fazendo-se eterna estrada.

‘E lá se vai mais um dia’... Deixemos ir os anos, concluo, a vida não nos quer para sempre, nem apegados ou tristes. Um dia também passamos, todos, mas longa vida à alegria.


Fernando Campanella

LUZ CADENTE


Foto by Fernando Campanella


Serão miragens
aqueles tons em cobre
ondulando em folhas na tarde?
Meus olhos devem andar poéticos
ou delirantes.
Ou mais febril a minha percepção
que entende
que os animais atendem
às nuances que a luz da tarde concede.
Luz e folha devem ter naturezas atadas
em delicado, intraduzível elo
que traça o pássaro ao ninho.
Não sei.
O que para as aves deve ser
algo como arbóreas núpcias
em mim
é um degredo em ecos,
um vago ruflar de um sentido.

Minha razão nada pode
contra a luz cadente
que vela e desvela
aquele tom amêndoa
- ferrugem quase dor,
quase leve -
que a alma agora consente
e que de volta
à presciência do mundo,
ao ninho da terra
vai me cumprindo.


Fernando Campanella

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

CAMPO DE TREVOS


Flor do trevo, foto by
Fernando Campanella

O coração em vinho tinto,
as pedras lisas
e ao dobrar de cada esquina
um dragão.
Vamos, me dê a mão.
No amor em seus labirintos
nos percamos com cuidado -
ah, este risonho campo de trevos,
minado.


Fernando Campanella

PASSEIO NO JARDIM


Foto by Fernando Campanella

Solitário cri de um grilo
que acasala outros cris
e crispa de amorosa eternidade
a sonolência úmida do jardim.

Fernando Campanella

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

FOLIA DE MINAS

Foto by Antonio Carlos Januário

Suspiram os saudosistas pelos antigos carnavais. Pura nostalgia! Cada um vive o carnaval de sua época. E cada época tem sua cota de encantos e decepções.

Para os foliões de hoje, o carnaval-espetáculo, os trios-elétricos, a música da Bahia, os grandes palcos montados para os shows de rua, e até o funk, falam na linguagem que entendem, e os motivam para a celebração festiva dos quatro dias.

Porém, se eu fosse criar um enredo para uma escola de samba, o tema seria ‘Maria-fumaça, me leva para os antigos carnavais de Minas’. Uma homenagem à grandeza local, fora dos grandes circuitos, do eixo das noticiadas folias do Momo pelo país.

A frente de uma comprida locomotiva seria o abre-alas, em formato de uma máscara estilizada, de onde se desprenderiam empuxos de fumaças de confetes em várias cores. As alas do comboio seriam vagões, com nomes de antigos blocos, ranchos, cordões e escolas de samba de cidades de todo o estado. Nomes como ‘Sossega, leão’, ‘Bando da lua’, ‘Caricatos de Araxá' , e mais e tais, puxariam este encantado trem da memória dos carnavais de Minas.

Dentro dos vagões, viriam os participantes, com as indefectíveis fantasias: arlequins, malandros, espanholas, pierrôs, colombinas, gondoleiros de Veneza, baianas, índios... Todos vestindo a camisa dos seus blocos, entoando as respectivas marchinhas, sambas-enredo, nas mil e uma noites de imersão na euforia.

Pessoas de Santa Rita do Sapucaí apontariam para o vagão de sua cidade, com os blocos arqui rivais, Ride Palhaço e Democráticos’, comentando: 'este desfile de meu bloco foi o melhor carnaval de todos os tempos.’ Uma senhora de Mariana se encantaria com o tradicional bloco do Zé Pereira, seu vagão apinhado dos bonecos que há 155 anos alegram o carnaval local. E habitantes de Leopoldina se divertiriam com seus ‘blocos dos sujos’, com o mestre Vitalino Duarte, que nos carnavais antigos saía pelas ruas da cidade com uma uma burrinha, cantando:

'Arranjei uma burrinha,
Para brincar no carnaval,
Ai, ai, ai!
Ai, ai, ai!
A orelha era de palha
E o rabo de jornal...'

Juiz de Fora veria um de seus empolgantes carnavais, o de 1966, quando uma escola de samba apresentou o enredo ‘Mascarada Veneziana', colocando na avenida seu primeiro carro alegórico, uma piscina com uma gôndola a flutuar. Belo horizonte teria seus ‘corsos’ representados, carros conversíveis enfeitados com serpentinas, bandeirolas, transportando, belas mulheres e figuras da sociedade local.

Cada um dos assistentes traria para sua cidade um imaginário, merecido troféu de melhor carnaval do mundo, na mais saudável , disputada, alegria.

O enredo teria como costura estas celebrações já idas de gerações e gerações, a explosão dos sentidos manifestando-se nos mais remotos , mineiros grotões.

Estaria, certamente, fora da mídia esta minha inusitada escola. Os grandes jornais e a TV não teriam interesse no carnaval de uma Capelinha, ou de uma Santa Maria de Itabira, por exemplo. Não importa. Minha locomotiva passaria como a vida que em todos os cantos acontece, e passa. Vida que no carnaval se disfarça, de si própria escapa, dando seu grito de alegoria.

A comissão de frente puxaria o desfile , cantando:

‘Maria fumaça, ô, ô,
me leva pra folia de Minas,
pro bloco do Uai,
pro esquindô, esquindô...’

Fernando Campanella, 20 de Fevereiro de 2009


Fontes de Pesquisa: 1) Site: 'Brasil: História e Ensino', 'Uma breve história do carnaval', por Natania Nogueira. 2) Site: rota do samba.com , 'Carnaval em Juiz de Fora', por Renan Alexandre Ligabo de Carvalho e Victor de Oliveira Rosa, com citações da Revista 'Em Voga', e Coimbra (1994).

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

CISNE ( MINI FÁBULA DAS EXPECTATIVAS)


Foto de Luis Dufaur (luzesdeesperança.blogspot.com)

Se a galinha botasse um ovo
e ao redor dela nos postássemos
na expectativa de um cisne
o espanto nos traria
uma anatomia de galinha
mas o ávido desejo divulgaria
que um príncipe nascera
em suaves carícias de plumas.

Fernando Campanella (1983)

ANTÍQUA (IV)


Foto by Fernando Campanella

Sopra-me
que ao de onde procedo
haverei com levezas
de, então, retornar.
Com o calor de teu sopro,
de teu insuflar,
meus versos,
como pelúcias e pétalas,
no regaço das tardes,
no jardim das estrelas,
haverão assim de cair,
haverão de pousar.

Fernando Campanella

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

SINE QUA NON*


Foto by Fernando Campanella

Ah, este instante na tarde
quando o sol bate seu ponto
e se despede
de um afugentar as sombras,
de mais um dia de claro ofício.
Pago, pelos préstimos,
ao operário sine qua non
com a moeda de meus sonhos,
um certo dourar de meus sentidos.
Logo à noite, vou desejar
que no outro dia retorne,
que nunca me deixe sem seu brilho.
Posso, então, a alma estendida
ressonar: a luz, eu sei,
em seu percurso me busca
e sempre haverá de me achar.

FernandoCampanella

* Sine qua non: latim, locução adjetiva,
'sem o qual não'. Espressão com que se
qualifica uma cláusula ou condição sem
a qual não se fará certa coisa.

VERSOS PARA MINAS


Foto by Fernando Campanella
(Pico do Papagaio, Aiuruoca, sul de MG)


...O que me fica de Minas
mais que os rumos das inconfidências
são as ossadas azuis distantes de seus montes
indecifráveis dinossauros férreos
incrustados na vastidão da alma...

(Trecho de 'Versos para Minas',
por Fernando Campanella)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

MINAS E NOMES (AMOR PERFEITO)


Aiuruoca, sul de MG, foto by Fernando Campanella

Seria Minas mais primal
em mantiqueira
mais sertão em buritis
mais ‘hermosa’ em mar
de espanha
mais com mar em paraty
mais saudade em ferrovia
mais moderna via fax?

Mais singela em capelinha
mais devassa em babilônia
mais barroca em marianas
mais latina in vino veritas
mais tupi em airuoca
mais sincrética
em nossas senhoras
de sabarabuçu?

Mais sangria em candeias
mais doída em mucuri?

Ou mais bahia em são francisco
mais mineira em turmalina
mais geral em maravilhas
mais criança em amanhece
em amor-perfeito
que Minas não é

Fernando Campanella

QUE C'EST TRISTE VENISE


Foto gentilmente cedida por Simone Wichert Grande

Que triste, Veneza
sem suspiros e barcarolas;
que insípidos, os segredos
sem botões nem corolas.
obscura, toda canção
sem teus ouvidos comigo
e o teu sonido de auroras.
O amor é redundante
e demanda que aos meus labirintos
mil vezes eu propale:
sem ti,
sou cidade fantasma,
bicho em maltrato -
silêncio em esporas.

Fernando Campanella

domingo, 15 de fevereiro de 2009

METÁFORA


Foto by RayDS (Night at Sea - Like Mars)
from flickr

Templo de meus ruídos secos
e de meu ouvidos gastos,
eis vossa água onde mergulho,
poetas que adoto, a metáfora
singrando o mar enigmático.

Fernando Campanella

SOL DA MEIA NOITE


Foto from blogger: ateaofimdomundo.smugmug.com/
.../159586898-M.jpg


Era um sonho, uma atmosfera de véspera . Talvez de algum advento, algum natal. Porém, não havia o corre-corre das ruas, a volúpia de compras e preparativos de cerimoniais.

Eu deslizava por diferentes cenários: uma floresta junto ao mar , uma montanha , um deserto... E glaciares também. Tudo envolto por um céu de um azul aprofundando-se em noturnos tons.

Ainda não haviam aparecido estrelas, apenas o sol já levando o dia, e uma lua antecipada, inteira, configurada no céu. As árvores, impregnadas de aromas, a dançar como em rituais do mais remoto encanto. E vi os animais : um caracol espanando a concha, abelhas, ansiosas lustrando a colméia; e os pássaros ajeitando os ninhos para mais ovos nas sombras das folhagens nos quintais.

Estrilavam os grilos, e cantavam, fora de hora, os galos. No mar, golfinhos cerravam grandes círculos; peixes polimorfos, multicoloridos, concentravam-se acima dos corais. Na selva , festejavam de galho em galho, os macacos. No azul espelho do gelo um alvoroçado coro de pingüins ensaiava seus cantos e passos. E no deserto , camelos em grupos coesos, iam em busca de algum oásis no tempo.

Apareceram antigos pastores, conduzindo ovelhas em calmas paisagens. Tudo parecia obedecer a um amoroso comando de preparar, limpar. Uma alegre espera embalsamava o ar.

Eram assim as imagens do sonho, tudo em clima de véspera de um descomunal evento .

Passaram, por fim, os cometas, alongando seus feixes dourados. E meteoros espoucavam, cintilando em fagulhas que saudavam os vaga-lumes . Despontaram os planetas, desdobraram-se as galáxias. Nunca tamanha profusão de celestes personagens reunidos eu vi . Estranho sonho! Como poderia o universo conspirar assim, tudo tão perto, tão junto dentro de mim?

Ouvi sons distantes, remotas vozes, há muito não ouvidas. E era clara a instrução que me transmitiam : eu desenharia longas linhas no ar, muitas, como em varias pautas musicais sobrepostas.

Passei a rabiscar aqueles traços, cegamente obedecendo àquele subliminar comando. Porém, tudo me parecia do mais claro e preciso objetivo, de qualquer sentido humano desprovido.
Tolo engano! Após um tempo os riscos foram se iluminando , um após outro... E assim todos, reluzindo em raios de mais fulgente ouro, chegando à sua mais antiga fonte, ao cerne de um alquímico sol. Explosão da luz primordial.

E as antigas vozes versando em língua, que por arte dos sonhos eu entendia, em grave encantamento assim diziam:

“ Eis o teu sol da meia-noite.
Eis a luz transfigurada.
Benditos os que vivem
em bons termos
com o hóspede imaginário,
com a ‘ louca da casa’.”

Fernando Campanella, 08 de Dezembro de 2006

sábado, 14 de fevereiro de 2009

TREASURED


Foto by Fernando Campanella

Wise is the teaching of the leaves:
acid green,
treasured sepia,
crumbling gold.
I silently
watch my seasons
unfold.

Fernando Campanella

SUAVE É A NOITE


Foto by Fernando Campanella


(Suave é a noite...
Logo a Rainha-Lua sobe ao trono de luz
com a legião de suas fadas estelares...
JOHN KEATS)


As estrelas espiam de longe
e o caracol ao ciciar da brisa
arrasta seus passos.
Meu amor dorme.
Suave é a noite em seu silêncio
de longos braços.

Fernando Campanella


TENDER IS THE NIGHT


(...tender is the night,
And haply the Queen-Moon is on her throne,
Cluster'd around by all her starry Fays...
JOHN KEATS )


The stars peep at a distance
and the snail trails its footsteps
under the breeze's voice.
My love is asleep.
Tender is the night
in its silence of long arms.

Fernando Campanella

LUTO NA ROÇA


Foto by Fernando Campanella
(Casa sesquicentenária de Gonçalves, sul de MG)

Íamos em um passeio pela área rural de Gonçalves, MG, bela cidadezinha encravada nos contrafortes da Mantiqueira. O casal de amigos estaciona o carro a uma certa altura para nos mostrar uma casa sesquicentenária, tida como a mais antiga do município. Um singelo monumento, preservado, seus porões em pedra, caiação nas paredes de pau-a-pique, antigas telhas escurecidas pelo tempo, um verde-negro em janelas e portas.

Excelente motivo para uma foto aquela casa na tarde. Quando nos aproximamos daquela maravilha, com seu mistério, seus segredos embrulhados em névoas e sonho, algo como um reconhecimento bateu em mim. Pareceu-me tê-la visto antes, e logo me lembrei que por ali já passara havia uns quinze anos. Na época, 1993, estava eu em férias em casa de amigos que lá então residiam. E em um dia frio transitáramos por aquele sítio.

A ocasião de minha visita anterior fora triste pois alguém havia falecido naquele lar.. Escutávamos as orações vindas de seu interior, algumas pessoas circunspectas à porta, uma atmosfera longa de pesar e dor, naquele grave silêncio do momento que viviam. Deparamo-nos com um homem de uns vinte e oito anos, inconsolável , em lágrimas, e o cumprimentamos.

Mas não nos detivemos por ali.. Algo como um pressentimento, um certo medo da perda de meus próprios entes queridos havia me tomado naquele momento. E logo partimos, meus amigos e eu, como se fugitivos, crianças buscando seus brinquedos e acontecimentos mais descompromissados da finitude de tudo.

Quinze anos mais tarde , algumas duras perdas já sofridas , eu haveria de retornar àquela casa do luto. À sua porta, reconheci o rapaz entristecido daquela época, agora um senhor, adentrando a meia-idade. Apresentei -me, pedi licença para tirar algumas fotos. E contei -lhe, então, de minha lembrança. Surpreso, o homem confirmou o falecimento da mãe naquela ocasião. Dona Mariana havia contraído uma infecção pulmonar, sendo levada ás pressas para São José dos Campos onde alguns dias depois viera a falecer. O sepultamento fora no cemitério local, de São Sebastião das Três Orelhas, o santo assim cognominado pelos três imponentes e altos picos da região.

O filho relatava-me o passamento da mãe, e algo como um vazio, uma certa tristeza, ainda nublava seu olhar. Porém, senti, mais que uma surpresa, uma certa gratidão vindo de sua alma, por eu, talvez, um turista como tantos que por ali passavam , de repente ter me lembrando de algo tão irrelevante aos olhos do mundo, tão precioso à sua memória.

Ao me despedir, senti-me aliviado, como por um dever, por feliz coincidência, então cumprido. E incorporei minhas perdas, minhas lágrimas, agora mais amadurecido em minha trajetória do mundo.

À porta daquela casa antiga havia um crucifixo. Dona Mariana, permanecia ali, eterna, naquele ícone, na casa singela, na memória do filho. Também presente na saudade de todos os caríssimos meus que as alegrias e dores na terra já haviam cumprido..

Requiescat!

Fernando Campanella, 10 de outubro de 2008

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

REQUIESCAT*


Foto by Antonio Carlos Januário

De meu mar, ofereço-te as ondas
e as praias que poéticas conchas te trazem.
Tais suaves mistérios te concedo, mais as algas
e as gaivotas que bicam tecidos de luz na tarde.

Povoados de ti, de mim,os barcos que chegam
e ardem.

Adere-te, pois, ao sal que a mim te chama,
cobre teus pés em espuma e encanto,
molha teu rosto
nas claras águas que o dia me abre.

(Sosseguem , minhas dorsais,
descanse, meu leviatã esconso).

Fernando Campanella


* Requiescat: palavra do latim, significando 'Descanse', usada na expressão 'Requiescat in Peace', 'Descanse em Paz'. Estas são palavras do ofício dos mortos, frequentemente escritas em lápides de túmulos.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CARTAS AO EU ( I )


Foto by Fernando Campanella

Meu caro Eu, este é um momento em que ao meu privativo quintal eu saio. Aqui o mundo me é suave, digerível e palpável.

Toco em uma chuva fina de cristais ralados , molhando ibiscos, e em samambaias selvagens que emergem das fendas dos muros, ao lado. As úmidas mil-folhas no vaso são pespontos em nossa alma bifurcada.

Tudo aqui planamente vital. Pudesse eu saciar o coração em fome por estas ternas formas.

Estes pombos sujos de ferrugem dos telhados são especiais efeitos nesta cena, neste teatro de paisagens. As nuvens concedem, às vezes, um azul: entro e saio.

Aqui tudo é pleno meu amigo, tudo tão desarmada simplicidade. Tua mente é que coloca significados, coisas além das coisas, vê deuses em cabeças de pombos. Tenta refrear, meu caro, esta tua insistência por signos alados.

Gosto de me aprofundar em uma certa fragilidade que me toma ; às vezes, de certas naturezas, chega à minha alma o sopro de um velho, bucólico, daimon. Sei que você me entende com uma amiga serenidade.

Uma percepção induz-me agora a um pio - psiu - ouço um tilintar de luzes, um saltitar de pássaros... Um silêncio, um prolapso, uma abelha saindo de meu limbo, um posfácio:


Um ceifeiro vem de meu jardim
certas pragas arrancar
porém de uma se esquece
e esta ,sorrateira,
vinga o descuido em flor.
Cinco mínimas pétalas
em cor
que a meu coração de abelha
vêm sedutoras tentar.
Obrigado, ceifeiro,
sem pudores te confesso:
nestes pistilos me deito,
me esfrego nesta flor mais rara
das tantas que já vivi a namorar.


Fernando Campanella, Janeiro de 2007

O QUE É QUE A BAIANA TEM?



Foto do Flickr ( Galeria de Iñigo Garcia)

Cem anos de vida estaria completando Carmen Miranda nesta semana de fevereiro de 2009. Justas homenagens são prestadas na mídia a esta que foi, talvez, junto de Pelé, a maior representante do Brasil mundo afora.

A portuguesinha do distrito do Porto, com alma de brasileira, como ela própria se definia, veio a ser um fenômeno de alegria e brasilidade. Seus detratores podem argumentar que ela, com seus turbantes, balangandãs e salto plataforma, tenha contribuído para um estereótipo de nosso país, uma nação que não é séria , na visão do estadista britânico francês Charles de Gaulle. Mas foi como nosso espelho, nos mostrando a nossa melhor face, nossas cores e sensualidade, sem modéstia ou falsos pudores. Longe do estigma de uma certa política corrupta, mostrou um Brasil que pode e deve se amar, se enfeitar, celebrando o viver.

Dos vários epítetos com que lhe aclamaram, de Pequena Notável a ‘Brazilian Bombshell’, ( algo como 'explosão brasileira') , rejeitou o de Embaixatriz do Samba, que considerava avacalhação. Talvez porque seu repertório contemplasse não só o samba, mas toda uma riqueza de gêneros musicais nacionais como samba canção, chorinho, marcha, marchinha de carnaval, cateretê , chegando à rumba e ao tango.

E fez escola esta inigualável artista, este mito, com seus sons e movimentos esfuziantes, irreverentes, sua pitoresca indumentária. Vivendo em época de alfaiates e modistas, onde nem se sonhava com design de moda, tem exercido influência em gerações e gerações de modernos estilistas, cantores... Madonna confessa ter se inspirado em seu estilo na composição de seus adereços. Escolas de samba, museus, peças de teatro, biografias e musicais sempre a revisitam e lhe rendem as honras que merece.

A pequena-grande notável fez muito por nossa cultura popular. Cantou na linguagem da mulher simples, do homem do povo, do 'malandro' carioca. Gravou composições de ícones de nossa música, como Ari Barroso, Joubert de Carvalho, Synval Silva ( a maravilhosa ‘Adeus, Batucada’) Lamartine Babo e Dorival Caymmi, e tantos outros. E levou para o mundo o que aqui existe de genuinamente bom, diferente dos que se curvam a fetiches de primeiro-mundismo. Nada como sua arte, para vermos, restaurado, o saudável orgulho de sermos uma terra pródiga em nossos próprios frutos, e não uma republiqueta de bananas.

O Brasil de Carmen era essencialmente tropical. E tropical era, para ela, uma palavra ‘quente’, segundo a jornalista e amiga Dulce Damasceno de Brito. Palavra que ‘simboliza todo o espírito de nós, latinos, principalmente em época de carnaval’. Nossa alma, tão assim latinamente assumida, e revelada, agradece.

Seu falecimento em 1955 foi como um apagar de uma chuva de meteoros que eletrizaram por vários anos o Brasil e o mundo. O sepultamento no Cemitério de São João Batista teve, nas palavras do jornalista e historiador Abel Cardoso Junior(1938-2003), o acompanhamento mais concorrido de toda a história do Rio de Janeiro. O Brasil que Carmen tanto amou e representou lhe rendeu homenagens de grandes líderes da História.

Fernando Campanella, 09 de Fevereiro de 2009

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

INDIFERENÇA


Foto by Fernando Campanella

Setenta vezes sete vezes
o céu mudou de tom
nas impermanências do dia.
Mas, e então?
Melhor para além da retina
ser a cor.
Talvez, assim, alguma diferença fizesse
se em um ponto A do universo
uma super-nova explodisse
na mais gritante, incosequente alquimia.

Fernando Campanella, 1989.

SAGA DE ASAS


Photo by Fernando Campanella

(Garça em colônia de nidificação,
às margens do Rio Sapucaí, em Bela Vis-
ta, sul de MG, a 20 km de Pouso Alegre, MG)

SAGA DE ASAS



Foto by Fernando Campanella

Novembro, estação das chuvas, e as garças já retornaram, para nidificação, àquelas árvores junto ao velho rio Sapucaí. Centenas delas, diferentes tamanhos, cores, e espécies ( branca-grande, vaqueira ou boiadeira, socó-dorminhoco ou garça-cinzenta...).

Algumas, como as brancas grandes, exibindo suas egretas, penachos especiais no dorso usados para o ritual de corte.

É a época da reprodução. No ninhal já se vêem as estruturas de gravetos e galhos secos, forradas de capim. Logo as fêmeas postarão os ovos verde-azulados, e os pais os chocarão e alimentarão os filhotes que vingarem.

Alvoroçadas com minha presença em seus domínios, emitem sons roucos, entrecortados, e brandem as poderosas asas quando de mim se afastam. Porém, jamais me atacam.

Quando pela primeira vez fotografei a colônia dessas aves , em meados de dezembro do ano anterior , os filhotes já estavam em seus ninhos, recém-nascidos, de uma beleza grotesca, plumas escassas , o bico enorme, desproporcional à estatura do corpo. Aproximadamente um mês mais tarde, em minha segunda visita, já eram adolescentes, com plumagem mais definida, em pleno ensaio para a rara beleza que portariam quando adultas.

Em Abril deste ano , por ali passando, não mais as vi. No outono, após as águas de março, baixando o nível das águas do Sapucaí, as várzeas da região do ninhal secam , dificultando para as garças encontrarem suas presas - plâncton, pequenos peixes e anfíbios - naquelas lagoas marginais. Em sua natureza migrante, as brancas grandes voam, então, para regiões de águas fartas, abundantes, como nas proximidades do imenso lago de Furnas.

As exóticas vaqueiras, insetívoras, rumam aos pastos em busca dos insetos do gado, abrigando-se em outros pousios. E do milagre dos instintivos rituais da vida, daquele clamor de sons e asas, restarão, após partirem, ali junto ao rio, tão somente algumas penas, fezes branco-acinzentadas e o silêncio dos ninhos vazios.

Agora, mais uma vez , em novembro, ali estão elas, os filhotes do ano anterior já são aves absolutas e plenas que, dando continuidade ao ciclo natural, postarão e chocarão seus ovos, revitalizando o local com o grasnar coletivo, o vôo elegante, as delicadas poses e movimentos de bailarinas.

Eu as aguardei durante longos meses para revisitá-las agora na estação das chuvas, meu coração como se atendesse a um chamado para registrar a renovação da vida em sua mais encantada alegria. Mas até quando as verei, agrupando-se, vindas algumas de longe, impulsionadas por um misterioso código biológico que lhes assegura um santuário de procriação precisamente naquele sítio?

Contemplando-as na tarde, consortes , amantes em plena, festiva cumplicidade, ciente de que logo partirão, em incansável saga de asas, para cuidar de outras conquistas, lembro-me dos versos do poeta irlandês, Yeats, referindo-se aos seus selvagens cisnes de Coole:

‘... Entre que juncos edificarão sua morada, / Junto a que lago, junto a que charco / Deliciarão o olhar do homem quando um dia eu despertar / E descobrir que voando se foram?’

Fernando Campanella, 22 de novembro de 2008

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

ESTRELAS HÃO DE LEMBRAR


Foto by Fernando Campanella


O mar me ultrapassa.
Mas ondas haverão de contar
Aos ouvidos que lá pousarem
Que um dia sonhei no mar.

O céu não vai se importar
Quando eu monge de meu hábito partir.
Mas estrelas enquanto restarem
Hão de lembrar
Que um dia me puseram feliz.

A terra , é fato, há de me subtrair.
Mas a árvore que me deitou raiz
E as cores
Que em meu tempo colhi
Estas eu levo comigo
Ninguém há de tirá-las de mim.

Fernando Campanella

PAISAGENS


Foto by Fernando Campanella


Candeeiro à beira da estrada
paisagens de neblinas e comas.
Cheiram mimos de melissa
dormem casas sombreadas
pupilas nortunas voam.

Coração circunspecto de Minas,
bate em noite
bate em dia
abre uma artéria em mim.

Fernando Campanella




JUNTO DE HERMANN HESSE


Foto by Fernando Campanella

As chuvas de março já começam a ensopar os jardins, a quase transbordar os rios. As tardes de março se tornam mais leves, já se aliviando do calor que se despede lentamente.Tardes para vôos de bicicleta, mergulhos em nervuras de folhas outonais, incursões no sempre renovado coração da natureza.

Como Minas está arraigada em mim! E ainda que sensação de estranhamento e exílio! Meus olhos se enchem de montanhas, copas de árvores, sibipirunas e capins. E seguem as comunidades voantes das garças, recortes brancos itinerantes contra o céu. Despejando seus últimos pingos de ouro nos pastos, o sol realiza a alquimia final do dia. E Minas ainda resiste.

Acodem-me à mente memórias do mundo, de mim. Lembro, vivo lembrando. Mas melhor agora estancar este fluxo perpétuo de imagens, embarcar nesta solidão da quase-noite. A primeira estrela já pulsa o olho neutro indecifrável.Melhor ainda, quem sabe, trazer à alma o consolo universal do Tao:
“...E no entanto, sossega meu coração. Tu vives no seio da mãe do universo.”

E espalhar pelo corpo uma fina onda de trégua e paz. Ouvir sinos longínquos, ver luzes de casas pequeninas engastadas nas serras, ou até mesmo pintar aquarelas fluidas mentalmente. Ou procurar alguém , algum ser, com quem compartir esta tarde. Mas quem viajaria assim tarde a dentro? A cidade arde suas luzes, regurgita seus ruídos e vaidades, lustra suas armaduras cimento e vidro. A cidade já encontrou o que lhe basta e consuma-se em seu próprio tempo.

Vejo, ao longe, no cimo de uma montanha, uma torre de televisão, delicada como um brinquedo. Queria pintar uma aquarela, agora de verdade, neste momento, ilustrar um livro de meus poemas, de minhas miúdas andanças. Depois, beber copos e mais copos de vinho, desabotoar os meus grilhões de Minas, e rir, rir, rir de tanta beleza e amenidade. Ah, sim, junto de Hermann Hesse.

Fernando Campanella, 13.03.1994

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O BEM-TE-VI E A FLAUTA


Foto by Fernando Campanella

Revisito, pela manhã, o conservatório de música da cidade. Em seus recintos, deixo, como sempre, meu espírito vagar, divagar, em eras passadas, ao som de flautas, pianos... A música eterna, a alma ritmada dos mestres, pairando nos corredores, escoando pelos beirais.

Escolas de música, assim como as bibliotecas, sempre exerceram um fascínio sobre mim, lembrando-me o trabalho dos copistas que preservaram o tesouro do pensamento clássico da total destruição pelos bárbaros. Nelas também se resguarda uma tradição, uma memória cultural que acolhe as almas sensíveis, sedentas do que o espírito da arte nos legou.

Quando me desgastam os ruídos da modernidade, do cotidiano, ali me refugio, por uns instantes, forjando, sempre, alguma desculpa a mim mesmo, como rever algum amigo que lá trabalhe, farejar alguma exposição de arte. Mas sei que o que realmente me motiva é a necessidade de uma suave , mais sadia alienação.

Na visita de hoje, algum aluno tocava ‘Clair de Lune’ ao piano, outro esforçava-se em uma peça de Lully, adaptada para flauta. Um coral ensaiava um madrigal do século XV. Diferentes estilos, um só espírito, uma só intenção: tocar, cantar, celebrar a vida, como o ofício das ancestrais, incorrigíveis, cigarras.

Visitar esses templos da música sempre me traz essas já conhecidas surpresas: a harmonia sempre reencontrada. Isso já seria mais que suficiente para reabastecer meu dia.

Mas eis que sem aviso, na visita de hoje, um bem-te-vi pousou na janela do corredor da escola, perto da sala de aulas de flauta doce. Demorou-se ali por alguns segundos, coçou as penas com o bico e de repente fez gracioso movimento que, à minha percepção, mais pareceu uma cena de bucólica dança.

Talvez, como eu, atraído pelos ecos de longínquos pastores, viria o bichinho ali, ocasionalmente, bebericar daquelas fontes, daqueles doces sonoros festivais. Ou, quem sabe, também como eu, a ave se sentisse esgotada , ás vezes, com a poluição sonora, os fios e a agitação das cidades modernas, ali buscando conforto.

Quem sabe? Mas não importa. A atmosfera do local, a convivência entre as eras musicais, a serenidade possível de minha alma, o som da flauta, e mais o bem-te-vi a ouvir, a dançar, tudo transformou-se em minha mente, na manhã, em uma roda holística, encantada.
Síntese divina? Talvez. Natureza e arte: belos extremos que se tocam.
Fernando Campanella, 10 de setembro de 2008

ISENTO


Foto by Fernando Campanella

Mira-te pelo calendário das flores
Que são viço e esquecimento.
Desprende-te dos ofícios do dia,
Apaga os números, os anos e anos,
Releva a data de teu nascimento.
E assim, por tão leve sendo,
Por tão de ti isento,
De uma quase resistência de pluma,
Abraça o momento,
Toma por bagagem os sonhos
E apanha carona no vento.


Fernando Campanella -
(Poema em homenagem pelo aniversário
de minha amiga Madalena)