quinta-feira, 30 de abril de 2009

QUEBRANTO


Foto by Fernando Campanella

Mira-te encanto traído
Teu vento virado
Na água.

Afasta a dor e o sentido
E lambe as tuas cinco chagas.

Afaga então a pedra
Invoca os deuses
desperta na concha do ouvido
O eco de luas sonhadas.


Corta o quebranto
Na lâmina funda
Da água.

Mira-te agora
Mira-te flor enquanto
Te espalhas em ondas
Na água.

Fernando Campanella

quarta-feira, 29 de abril de 2009

FACTUAL


Foto by Fernando Campanella


um estalido
cai uma folha seca
no quintal

factualmente

e o poeta retoma a velha tecla
e bate, bate
todo o outono que sente...

Fernando Campanella




FUCHSIA 'LA CAMPANELLA'


Fuchsia 'La Campanella'
(Brinco-de-Princesa 'La Campanella)
farm4.static.flickr.com/3169/2299882838_fc564...

terça-feira, 28 de abril de 2009

LA CAMPANELLA


Fulchsia 'La Campanella' *

(Poema dedicado à minha amiga Leila Laderzi)

Aquela senhora
toca um piano na tarde -
La Campanella* - as teclas ágeis
ondulando em mimos,
em vibrantes sinos delicados.
Imersos, cada um em sua estória,
uma sintonia de repente
nos toma, uma arte,
um rio profundo sem corte -

uma flor
em um certo azul que nos sonha.

Fernando Campanella



* La Campanella é o nome dado ao movimento final do Concerto para violino número 2 em B menor, de Paganini, porque o tom era reforçado por um pequeno sino de mão. Franz Liszt tomou emprestado esse tom e compôs várias peças baseadas nele, sendo a mais famosa o terceiro dos seis Grandes Estudos de Paganini, de 1851, também conhecido como La Campanella.

Ouça a peça por Franz Lizst:


* Flor da foto: Fuchsia 'La Campanella'.

"As plantas conhecidas vulgarmente por 'Brincos-de-Princesa pertencem ao gênero Fuchsia, família Onagraceae.

Todas são originárias da América Central e do Sul, excepto três espécies Neo-Zelandesas.
Existem espécies rastejantes, anãs e sub-arbustivas, bem como outras arbustivas de grande porte ( algumas podem atingir os 4 a 5 metros de altura).

Tanto quanto se sabe, os Brincos-de-Princesa foram introduzidos na Europa nos finais do século XVIII. A partir da primeira metade do século XIX, alguns horticultores dedicaram-se a desenvolver híbridos e cultivares destas espécies: o sucesso foi tal que , actualmente, se conhecem e se comercializam centenas de variedades. "
Fonte: htttp://aimagemdapaisagem.nireblog.com

domingo, 26 de abril de 2009

MÍNIMOS


Foto by Fernando Campanella

um sopro
ninguém viu
de onde vem
ninguém sabe*
aonde vai

um vírus
quase
nada

um
ponto
na
enseada

um quantum
envieza o olhar



uma artéria
e Roma não tem bocas
e Inês é folha morta


um dedo de luz
na chuva oblíqua
um arco de cores
instala

um vôo desanda a rota

ninhos desovam

um triz
frio polar
oceanos que resvalam

torres se movem
pés desarvoram

espelhos que descamam
não consigo me achar

um mínimo
e já não me sou

de repente
algo me sonha

Fernando Campanella

* "O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai - assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito."

(Jo, 3,8)

("Spiritus, ubi vult, spirat: et vocem

ejus audis, sed nescis unde veniat.

aut quo vadat: sic est omnis

qui natus est ex spiritu"

(Jo 3, 8)

sábado, 25 de abril de 2009

(E O AMOR QUE AGUARDE)


Tela de minha amiga Horleni
Foto by Fernando Campanella

Quero-te inteira, impossível, e nua
No ruído
Na sonância das harpas

No silêncio
Dos passos da noite na rua

Quero teu corpo, teu retrato
Teu astro

- gênese e posfácio -

Quero o templo absoluto de teu quarto

- E Tua memória,
Dor de minha ausência,
Pedra angular de minha estória -

Quero-te como ninguém assim quis
Como um moinho de ventos
Como sombra feliz

Com o sortilégio dos deuses
Com furor
Com a subserviência dos santos
Com pudor

Na fartura, na insolvência

Com a senha da morte
Com o desencanto
Com a estrela do norte

Quero-te carne em arte

(E o amor que aguarde -
O amor é coisa outra:
É trégua ou sorte)


Fernando Campanella








quinta-feira, 23 de abril de 2009

ANIMA


Foto by Fernando Campanella

Há um momento de errância
da distância que abres nos ventos.
É quando te chamo
E não me atentas.

Há este tempo em que me deixas,
tua sombra espúria
singrando a dormência dos lagos.

Mas meu sol de novo te acende
em algum instante
quando a alma de novo
consentes.

Não vês que mudo a sorte
que tenho a senha dos tempos

e que os gansos de longe
agora em teu verão adentram?

Então,
de teu cinza- morte
tua paisagem
é toda agora canto
e procriação.
Fernando Campanella

ANIMA (MILTON NASCIMENTO)


http://images.amazon.com/images/
P/B0000046J5.01._SCLZZZZZZZ_.jpg


Ouça 'Anima' , música de José Renato
e letra de Milton Nascimento:

http://www.youtube.com/watch?v=lRGMJiB6O8o

Lapidar
Minha procura toda
trama lapidar
o que o coração
com toda inspiração
achou de nomear
gritando: alma
Recriar
cada momento belo já vivido
e ir mais
atravessar fronteiras do amanhecer
e ao entardecer
olhar com calma
entãoAlma, vai além de tudo
o que o nosso mundo ousa perceber
casa cheia de coragem, vida
tira a mancha que há no meu ser
te quero ver
te quero ser
alma
Viajar nessa procura toda
de me lapidar
neste momento agora de me recriar
de me gratificar
de busto, alma, eu sei
casa aberta
onde mora o mestre, o mago da luz
onde se encontra o templo que inventa a cor
Animará o amor
Onde se esquece a paz
Alma, vai além de tudo
o que o nosso mundo ousa perceber
casa cheia de coragem, vida
todo o afeto que há no meu ser
te quero ver, te quero ser
alma
(Milton Nascimento)

A VIDA, ENFIM


Foto by Fernando Campanella

Se nascemos para o amor
para a celebração, não oficial, da vida,
não deixe, Deus, que eu me afogue
nas emboscadas de meus dissídios.
Venha a mim, a centelha exata
que relumbra , atravessa os pântanos
e inebria os párias.

Um mundo, enfim,
sem cifras nem mágoas.

Fernando Campanella, 1986

terça-feira, 21 de abril de 2009

POEMAS ANTIGOS


Julio César*
http://marius70.no.sapo.pt/julio%20cesar.gif



Olhai os animais do campo
que não torturam
nem vilipendiam
e lembrai aos ditadores
que não obstante seu fausto
jamais tiveram um sono pleno
como o deles.

Fernando Campanella, 1985


*" Na Roma antiga, quando a república enfrentava situações muito graves, os cônsules designavam um ditador que assumia todos os poderes até que se restabelecesse a normalidade...Modernamente, o conceito de ditadura aproxima-se mais da idéia de tirania da antiguidade do que da ditadura romana...Platão e Aristóteles enfatizaram que a marca da tirania é a ilegalidade -- o exercício do poder pela vontade absoluta de uma pessoa ou grupo ou a violação da legislação em vigor. Suas descrições de tiranias na Grécia antiga e na Sicília têm características muito próximas das formas que as ditaduras modernas adotam. Como os tiranos descritos, os ditadores ganham o controle social e político despótico pelo uso da força e da fraude. A intimidação, o terror e o desrespeito às liberdades civis estão entre os métodos usados para conquistar e manter o poder. A sucessão nesse estado de ilegalidade é sempre dificil."

Texto retirado do site: http://www.sosestudante.com/historia/ditadura.html

segunda-feira, 20 de abril de 2009

ANTÍQUA (I)


Foto by Fernando Campanella

Meu coração tem o lirismo rude
das charnecas (acridoce palavra).
Chegam os ceifeiros e o cortam -
arrancam –lhe os capins e os piolhos -
mas traz a teimosia,
a suave resistência dos restolhos
(bela palavra) : tosa-me o tempo ,
retrocedo, tudo me desaba
mas o que me podam é o que cresço.

Fernando Campanella

ANTÍQUA (II)


Foto by Fernando Campanella

Ali entre os juncais
a face de um deus esquecido
reberverava na tarde –
tua alma é antiga, junta-te a nós –
chamavam -me os juncos,
e tremiam
ao meu silêncio que era um vento
que eriçava a memória da água.

Fernando Campanella

domingo, 19 de abril de 2009

O NOSSO ALMOÇO ESTÁ GARANTIDO


Foto by Fernando Campanella


Recebi em e-mail enviado por um amigo um texto atribuído ao NETO (MENTOR MUNIZ NETO), diretor de criação e sócio da Bullet, uma das maiores agências de propaganda do Brasil. Trata-se de uma reflexão oportuna sobre a tão propalada crise mundial.

É bom termos em mente que quando se fala em crise econômica não é como se falássemos de fenômenos naturais como o terremoto de L’Aquila, na Itália, recentemente, nem das enchentes em Santa Catarina no verão passado, pois esses são democráticos, não tecem distinções entre pobres e ricos

Nem comparemos, pelo mesmo raciocínio, tal crise mundial às gripes Espanhola e Asiática que assolaram o mundo em um passado mais distante, ou à própria AIDS que a partir da década de oitenta do século XX desafiou a medicina, e carregou de tons sombrios a perspectiva de sobrevivência de nossa espécie.

Quando se fala em crise econômica mundial entenda-se crise de trabalhadores mundiais, perda de empregos, acirramento da pobreza e rebaixamento dessa condição à miséria.É quando se fazem arranjos, tomando-se decisões emergenciais para lá de frias e drásticas para que o capital permaneça nas mesmas mãos que o detinham.

Crise econômica mundial verdadeira acontecerá quando o tal 'capitalismo turbinado' morder o próprio rabo, tendo esgotado, por exemplo, os recursos hídricos do planeta. Quando houver guerra por água potável. Aí, será um Deus nos acuda, um salve-se quem puder: ricos contra ricos, irmão contra irmão, bancos contra bancos...

Então poderemos falar em crise global democrática, sem distinções, nivelada de cima a baixo. Imaginem um situação de racionamento extremo em que teremos de optar: ou bebemos a água, ou tomamos banho, ou lavamos nossos pratos.
(Fernando Campanella)

Eis o texto enviado:


"Vou fazer um slideshow para você.
Está preparado? É comum, você já viu essas imagens antes.
Quem sabe até já se acostumou com elas.
Começa com aquelas crianças famintas da África.
Aquelas com os ossos visíveis por baixo da pele.
Aquelas com moscas nos olhos.
Os slides se sucedem.
Êxodos de populações inteiras.
Gente faminta.
Gente pobre.
Gente sem futuro.
Durante décadas, vimos essas imagens.
No Discovery Channel, na National Geographic, nos concursos de foto.
Algumas viraram até objetos de arte, em livros de fotógrafos renomados.
São imagens de miséria que comovem.
São imagens que criam plataformas de governo.
Criam ONGs.
Criam entidades.
Criam movimentos sociais.
A miséria pelo mundo, seja em Uganda ou no Ceará, na Índia ou em Bogotá sensibiliza.
Ano após ano, discutiu-se o que fazer.
Anos de pressão para sensibilizar uma infinidade de líderes que se sucederam nas nações mais poderosas do planeta.
Dizem que 40 bilhões de dólares seriam necessários para resolver o problema da fome no mundo.
Resolver, capicce?
Extinguir.
Não haveria mais nenhum menininho terrivelmente magro e sem futuro, em nenhum canto do planeta.
Não sei como calcularam este número. Mas digamos que esteja subestimado. Digamos que seja o dobro. Ou o triplo.
Com 120 bilhões o mundo seria um lugar mais justo.
Não houve passeata, discurso político ou filosófico ou foto que sensibilizasse.
Não houve documentário, ONG, lobby ou pressão que resolvesse.

Mas em uma semana, os mesmos líderes, as mesmas potências, tiraram da cartola 2.2 trilhões de dólares

(700 bi nos EUA, 1.5 tri na Europa) para salvar da fome quem já estava de barriga cheia. Bancos e investidores.

Como uma pessoa comentou, é uma pena que esse texto só esteja em blogs e não na mídia de massa, essa mesma que sabe muito bem dar tapa e afagar... Se quiser, repasse, se não, o que importa? "O nosso almoço tá garantido mesmo...".
(Texto atribuído a Mentor Muniz Neto)

sábado, 18 de abril de 2009

OS DIAS LINDOS E A CRÔNICA


Foto by Fernando Campanella

Estes dias de abril , rarefeitos de azul, esta luz mais difusa de outono, lembram-me Carlos Drummond de Andrade em ‘Os Dias Lindos’*, e de como seria uma temeridade escrever sobre tais dias, visto que o poeta-cronista sobre eles, tudo, tão magnificamente, no breve espaço de uma crônica descritiva, já disse.

Que maravilhas opera em nós a leitura de textos inspirados como o de Drummond. Tenho carregado comigo ao longo dos anos a impressão de uma antiga mestra de Língua Portuguesa, a de que esses curtos escritos, as crônicas, são pequenas grandes obras de arte que, com a ampla difusão da imprensa no Brasil, no século XIX, começaram a aparecer nos jornais, inicialmente como folhetins, nos moldes franceses. E que foram se adaptando, encontrando seu estilo próprio, até se constituir, segundo muitos estudiosos da literatura, em fenômeno literário tipicamente nacional.

Ou seja, a crônica dos grandes mestres deste gênero em nosso país, é um produto genuíno, tem nossa face, nosso excelente ‘jeitinho’ de fazer literatura. Os features dos jornais americanos, por exemplo, que vão além do factual, dando uma dimensão humana, atemporal, à notícia, de nossa crônica se aproximam mas ainda não têm o tom descontraído, o lirismo, ou até o humor que a caracterizam.

Estes dias lindos de abril, uma conversa no boteco, uma borboleta que do acaso cruza o tráfego pesado de uma tarde no Rio de Janeiro, uma galinha que bota um ovo, um pombo que atrasa o encontro com a namorada, um padeiro que entrega o pão de manhãzinha... Infinitos são os assuntos dessas narrativas que da vida miúda, esquecida, até ignorada, tecem um universo de enorme interesse e inusitada beleza.

Se comparada às matérias de gaveta, ou às matérias frias, de um jornal, a crônica as sobrepuja pela transfiguração e eternização do efêmero. E Embora com eventos circunscritos no tempo, pode ser lida, ou publicada, como toda boa literatura, em todas as épocas, sem subordinação a pautas, ou prazo de validade, como as reportagens e as notícias.

Seja um relato de viagens ou do cotidiano mais banal; de teor cômico ou filosófico; de costumes, da vida privada; seja poética, suave, crítica ou mordaz, a crônica é a menina dos olhos de um jornal, um bálsamo para os seus leitores fiéis. Gênero híbrido, mescla de literatura e jornalismo, nela a crueza dos fatos é temperada pelo olhar especial do autor.

A singularidade do olhar é que faculta à crônica o privilégio de escapar das páginas da mídia impressa e se eternizar em livro, constituindo-se em registro luminoso de um certo evento, de um flagrante da vida que, se apenas notícia, seria, como tudo e como tanto, para sempre perdido, uma página a mais do calendário, somente, arrancada.

Fernando Campanella, 18 de abril de 2009

* “Acontece em abril, nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins meteorológicos não se lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento. Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos. E aboliram, sem providências drásticas, o estatuto do calor...”

(Carlos Drummond de Adrade - Os dias Lindos)

BREVE HISTÓRICO DA CRÔNICA



Fernão Lopes
http://en.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Lopes



Do grego chronikós, referente a tempo (chrónos), pelo latim chronica ,o vocábulo crônica, segundo Massaud Moisés, “designava, no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos, segundo a marcha do tempo, isto é, em sequência cronológica”.

Outras fontes nos informam que em suas origens a crônica destinava-se a relatos de fatos verídicos e nobres, também em ordem cronológica. No Antigo Testamento, por exemplo, no livro das Crônicas, o que se visava era o registro da grande história do povo e dos reis de Israel. E em Portugal em 1434, Fernão Lopes, notário, guardião-mor da Torre do Tombo, foi oficialmente designado pelo infante rei D. Duarte, a escrever as crônicas dos reis anteriores e dos feitos do rei D. João I.

Nos dois exemplos acima citados, podemos constatar que esse tipo de narrativa revestia-se de uma aura de grandeza, sendo os cronistas contratados não somente pelo seu conhecimento histórico, como pela habilidade de narrar em elegante e bela linguagem as glórias do contratante e de seus antepassados.

Embora capacitados para tal empreita, dedicados à pesquisa, munidos de informação e de material arquivístico e, sobretudo, preocupados com a veracidade do que relatariam, os cronistas antigos, apaniguados pelos reis e nobres, não poderiam livrar-se completamente de um certo partidarismo, de uma visão às vezes unilateral dos fatos que relatavam. Daí resvalavam às vezes, em certas passagens de suas crônicas, para o romance histórico.

Rigor histórico à parte, foi a própria literatura a que mais se enriqueceu com as crônicas ditas ‘do reino’. Nos relatos sobre a glória de Davi, por exemplo, temos a passagem de sua oração a Deus, uma pérola espiritual e literária: “...Dignai-vos, portanto, (Senhor) abençoar a casa de vosso servo, para que ela subsista perpetuamente diante de vós; porque o que abençoais, Senhor, é para sempre bendito.” E Fernão Lopes, nas palavras de Oliveira Marques, é um dos maiores escritores de todos os tempos, por seu poder descritivo e evocativo, quando por exemplo personaliza uma cidade como Lisboa.

Já da época das grandes navegações, que diz respeito ao Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel é tida como a primeira crônica nacional. O relato da descoberta de nosso país era uma crônica no sentido atribuído ao vocábulo, ou seja, narrativa em ordem cronológica do que acontecia no Novo Mundo. Indiscutível também foi seu valor literário, “pois ele recria com engenho a arte tudo o que ele registra no contato direto com os índios e seus costumes naquele instante de confronto entre a cultura européia e a cultura primitiva”. (Jorge de Sá).

No século XIX, com a ampla difusão da imprensa, a crônica assumiu seu sentido estritamente literário. Segundo alguns estudiosos, ela apareceu inicialmente em forma de folhetim, no rodapé dos jornais da época. José de Alencar definiu o folhetim como uma miscelânea de assuntos, de artigos a ensaios ou resenhas literárias.

Dos folhetins iniciais, foi então se aclimatando na pena de grandes talentos de nossa literatura, até assumir, segundo alguns críticos literários, uma identidade própria, uma característica tipicamente nacional, componente imprescindível dos jornais.

Fernando Campanella, 18 de abril de 2009

Fontes de Consulta:

1)A Bíblia Sagrada (Antigo Testamento)

2) http://www.arqnet.pt/portal/pontosdevista/om_lopes.html

3) http://www.capuchinhos.org/biblia/index.php?title=1%C2%BA_das_Cr%C3%B3nicas

4) http://bocc.ubi.pt/pag/tuzino-yolanda-uma-interseccao.pdf


UMA CRÔNICA DE RUBEM BRAGA


Rubem Braga, 3.bp.blogspot.com

O PADEIRO

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. Enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não, senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como o pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Rubem Braga, Rio, maio, 1956.

RECONFORTANTEMENTE BELO


Foto by Fernando Campanella


Leio no jornal da família em letras garrafais: “MAU HUMOR É UMA DOENÇA.” E segue uma reportagem sobre recentes descobertas científicas relacionadas à Distimia, doença do mau humor, que atinge 3% da população do mundo.

Segundo essas descobertas, a diminuição dos níveis de um neurotransmissor no cérebro, a serotonina, seria responsável pela depressão crônica, ocorrência que leva o indivíduo a enxergar o mundo através de uma ótica insípida e monocromática. Você perguntaria a um distímico “como vai?” e a resposta seria um invariável “tudo cinza”.

Colocada em termos psiquiátricos mais precisos, longe de qualquer leiga simplificação, trata-se, essa condição, de um transtorno afetivo da personalidade. Seus portadores apresentam sintomas como tristeza, baixas energia e auto-estima, perda ou aumento exagerado de apetite, etc. Diferente da depressão, é um estado crônico e não chega a comprometer gravemente a vida profissional e social do indivíduo.

A distimia deve ter feito escola e dado ao mundo frutos notáveis como Schopenhauer e Nietzche, ou espécimes bem menos interessantes como aquele nosso vizinho carrancudo ‘que fecha o tempo’ por onde quer que passe.

Por um outro ângulo , a própria natureza deve ter suas porções ‘distímicas’, nos dias carregados do chumbo das nuvens, nas tempestades... E mesmo o universo deve ter portado essa condição, antes do ‘fiat lux’, da luz inaugural. Assim, alguns elementos distímicos, em maior ou menor grau, devem ser herança, parte constituinte da psique mais remota de todos nós.

Mas melhor não pensar em atavismos, em amarras ontológicas agora. Não em um domingo de abril como este, tão gritante de azul...Deixo então minhas elucubrações e saio para o pequeno jardim de minha casa onde passa uma pequena borboleta, bisbilhotando de flor em flor.

Lembro-me de um trabalho de pesquisa de Língua Portuguesa feito por um ex-aluno de sexta série, que dizia: “A borboleta põe seus ovos e morre. Esses ovos geram lagartas. E das repelentes lagartas surgem borboletas azuis, douradas, vermelhas, coloridas. Você pode vê-las voando silenciosamente ou pousando suavemente numa flor.” E mais adiante, “...Em geral, a vida deste inseto é mais curta que o tempo que leva para nascer...” No final da pesquisa havia o desenho de um lepidóptero estilizado, todo moderno e multicolorido , feito pelo próprio aluno.

Textos como esse da metamorfose da borboleta, em sua cristalina simplicidade, e o dom artístico, a criatividade de meu ex-aluno, reacendem- me o imenso valor e a possibilidade da alegria, ajudando-me a contornar os efeitos nocivos que uma certa distimia, ou melancolia, possa surtir em mim . Outros expedientes de que me utilizo são viagens, música, leitura, a dedicação á escrita, à fotografia, ... Ou caminhadas, em um final de tarde, para esquadrinhar o céu à espera de Vênus, ou do Cruzeiro do Sul.

Para outros, melancólicos mais crônicos, ou até distímicos, na acepção médica do termo, felizmente surgem alternativas, como psicoterapia com medicação, complementada por exercícios físicos, que podem minorar o seu mau-humor, restituindo-lhes maior satisfação e contentamento no viver.

Porém, para todos nós , distímicos ou não, melancólicos eventuais ou inveterados, ou apenas mais estressados, a subida de uma montanha, impregnados da alma de um artista, seria uma boa opção para reequilibrarmos o nível de serotonina em nossos cérebros. Ao chegarmos ao topo, veríamos que o mundo pode ser terrível, mas igualmente belo. Reconfortantemente belo.


Fernando Campanella, 17.04.1995

terça-feira, 14 de abril de 2009

BÁLSAMO*


Foto by Fernando Campanella


O amor é triste – proclamariam minhas viúvas.
Mas disse o filósofo: a alegria corteja
A mais profunda eternidade.
Todas vertentes consideradas
Abandono o vale
Onde as sombras compõem a enormidade.
Os grilos agora tilintam, e a luz da lua
Impregna as árvores de um bálsamo –
Meu amor, se possível, me aguarda,
Retorno a ti, clara a trilha
Que agora a meus olhos se abre.

Fernando Campanella


*Na realidade, este poema foi escrito primeiramente em inglês, com o título de BALM. A tradução veio depois, porém não saberia dizer se sou um bom tradutor de mim mesmo. Abaixo, a versão original em inglês:

BALM

Love is sad –
Would my widows proclaim.
But said the philosopher:
Joy courts deepest eternity.
All things considered, I leave the valley
Where shadows rise domain.
The crickets are tinkling,
The moonlight is embalming the trees-
Wait , shall you, my love,
I can now see the trail,
I am returning to thee.

Fernando Campanella

(Que diz a profunda meia-noite? “Tenho dormido, tenho dormido! De um profundo sono despertei: O mundo é profundo, mais profundo do que o dia, pensava. Profunda é a sua dor e a alegria mais profunda que o sofrimento! A dor diz: Passa! Mas toda a alegria quer eternidade, quer profunda eternidade!”
(Friedrich Nietzsche)












sexta-feira, 10 de abril de 2009

ALMA DE MINAS


São Domingos, foto by Fernando Campanella


“Sou um recém-cogumelo
No pasto-Minas brotado,
Chuvas que caem pra onde se alongam,
Olhos que vêem, o que enxergarão?”

São Domingos, mais uma parcela infinitesimal de Minas que almejo. Indago a uma senhora pelo caminho certo, e sorridente ela me aponta a estradinha de terra e pergunta “Vai rezar lá em cima meu filho?"

São Domingos é uma serra, um paredão de matas verdes, cachoeiras, um bairro e sua gente. E uma igreja construída por devotos. Há alguns anos um rapaz teve visões de Nossa Senhora naqueles altos. Teria recebido revelações apocalípticas e conselhos sobre a urgência da fé e da oração para um rearranjo espiritual do mundo.

Aquele lugar é tudo da Terra e mais uma aquarela dos deuses. Hospeda e transcende toda inquietação humana. Região mais fria, de ar mais rarefeito, a temperatura cai seis ou sete graus quando lá subimos. Campos de cultivo de milho, de batata, pastos, vacas de leite, bares perdidos à beira da estrada ... Tão acostumado deve estar a gente dali à natureza que não sei se consegue enxergar a beleza de suas araucárias, suas luas e seus pássaros encantados.

Ali vacas mastigam ad aeternum os pastos e, em minha curta visita, eu as mirava contra a paisagem de um sol caindo à boca de um monte, em algum buraco da noite, suave momento em que a terra recolhia a luz.

Passei pela sua igreja lá em cima mas a modernidade forçada de sua arquitetura não me estimulou a entrar. Meu coração se abriga em capelas mais simples, despojadas, onde corujas pousam à noite, em cujo interior imagens de santos são depositadas.

No caminho de volta, pintado entre montanhas, em singelas pinceladas, surgiu um povoado de onde partiam sons – matracas, algum canto sacro, uma litania - naquele entardecer de uma sexta -feira santa. Fiéis portando velas, preparavam-se para uma recomendação das almas.

Passamos por eles , porém ninguém nos olhou. Graves, temerosos de maus espíritos, não se atreveriam, talvez, a distrair os olhos do intuito que ali os reunia. Já deles a uma certa distância, ousei olhar para trás. E vi a alma de Minas, toda misteriosamente clara, tão antiga, entre aquela gente, orbitando aqueles montes.
Fernando Campanella, 5 de abril de 2007


FOLIA DAS ALMAS


Foto by Fernando Campanella


A encomendação das almas (ou recomendação das almas) é um ritual de caráter religioso, herdado da colonização portuguesa no Brasil. De origem desconhecida, sabe-se que na Alta Idade Média já era praticado em Portugal.

Diferente das exéquias, ritos e orações prestados ao defunto pela igreja, essa tradição é praticada geralmente entre o povo, sem a intervenção oficial de um padre, e fora dos domínios dos templos católicos.

Trazida ao Brasil pelos jesuítas no século no XVI, com o objetivo de evangelização, esse ritual era bastante comum em regiões do interior do Brasil. A partir da segunda metade do século vinte foi perdendo a força de manifestação devido ao êxodo rural provocado pela industrialização e consequente poder de atração das cidades.

Com variações regionais, a encomendação das almas acontece na quaresma, tendo seu ponto alto na sexta-feira santa. Fazendas, sítios e casas da comunidade são visitados por um grupo de fiéis com o objetivo de rezar pelas almas que se encontram no purgatório, intercedendo por elas para que encontrem o perdão e o alívio junto ao Senhor

No município de São Roque de Minas, na região de Guiné, segundo um excelente trabalho de pesquisa de Genio Alves, da Universidade de São Paulo, havia um outro intuito na prática dessa encomendação , ou seja, o de agradar as almas penadas, evitando sua interferência no mundo dos vivos.

Naquela região, a prática, hoje extinta, era denominada Folia das Almas. De um ex-praticante o autor da pesquisa colheu esta declaração: “(...) ela (a Folia das Almas) tinha uma valia, um significado certo. Não era
como uma festa, como um baile. Era como se fosse um acordo com o ‘outro
lado’. Cantavam e tocavam para ‘elas’ e assim ‘elas’ não incomodavam as
pessoas, as casas. Tanto que, os foliões não tinham medo. Nem de gado bravo,
nem de cachorros, nem de outra coisa...”

Seja com a função de interceder pelos mortos junto a Deus, ou de agradar as almas que não tiveram o merecido descanso, para que não assombrem suas vidas, a tradição da encomendação das almas é uma manifestação popular genuína, por onde os vivos entram em bons termos com os mortos, redimensionando o mistério, o assombro do além.
Fernando Campanella

Fontes de pesquisa:

1) http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0003-1.pdf

2) http://www.anpuhsp.org.br

quinta-feira, 9 de abril de 2009

DA PÁSCOA


Foto by Fernando Campanella


Porque para ressuscitar um Deus
não se prescrevem datas
(o divino brota
quando se rompem couraças)

e porque os símbolos, os mitos
são do humano a ceia mais farta,
peço-vos licença, Senhor de minha estória,
para à vossa mesa sentar-me,
com minha nudez
e toda fome de minha alma
inglória.

Fernando Campanella

BARCAROLA


Obra do pintor Salvador Dali
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"...E mergulhei então no poema do mar..." *

Meus versos em uma barca

ou em uma garrafa vazia

meu gondoleiro é o vento

e alguma ilha a fantasia.

Fernando Campanella


*...E mergulhei então no Poema do Mar,

todo de astros mesclado, e leitoso, a beber

os azuis verdes, onde, a flutuar e a sonhar

um absorto afogado às vezes vai descer..."

(Rimbaud, estrofe do poema 'O barco bêbado')



terça-feira, 7 de abril de 2009

CAPELA DOS OSSOS


Foto by Ana Gonzales

Eu, que não vivi o Alentejo,
que não voei com as cegonhas
sobre suas albufeiras ao entardecer
( nem em suas quintas pernoitei)

e que não cantei odes
à glória de um D.Manuel e suas esquadras
( nem o Tejo naveguei)

que às suas capelas
não me desfiz dos ossos,
não venci seus mitos,
não cruzei o Bojador

(nem de sua flor mais bela
em Évora me enamorei)

eu, disso tudo
por descompasso dos astros,
me privei.

 Mas, oh, fado lusitano,
oh, alma dolente e migrante,
tua nostalgia– teu estar nunca estando – tua sede
por mares nunca d’outrem navegados,

esse tanto, eu herdei.

Fernando Campanella

ALENTEJO


Foto by Ana González

Foto by Ana González

Foto by Ana González

Foto by Ana González

Foto by Ana González

(Acima, as fotos que minha amiga do Orkut, Ana González, paraguaia, residente em Portugal, gentilmente cedeu para esta especial postagem de um poema que fiz ( Capela dos Ossos) sobre o Alentejo.)


MARES NUNCA D' OUTREM NAVEGADOS

Escrever sobre o Alentejo sem nunca ter estado em Portugal, como seria isso possível? Seria como falar do outono de New England sem nunca ter visto in loco as tonalidades de suas folhas nessa específica estação do ano. Ou como falar dos ursos que em nosso inverno nunca vieram hibernar.

E no entanto falamos. E como poetas, cantamos, em nosso ritmo próprio, tanto as paisagens que nos são peculiares, tão nossas, como as que são de outros. Cantamos nossas montanhas, se as temos, nossas planícies, se as desbravamos, nossa gente com quem convivemos. Mas também escrevemos sobre longos desertos que nunca percorremos, divagamos sobre galáxias que jamais viremos a conhecer: os tais 'mares' nunca d'antes, nunca d'outrem navegados.

"Para conhecer o mundo/ Não é necessário viajar pelo mundo..."*, dizia Lao Tsé. Concordo com o pensamento do lendário sábio taoísta, sem tirar o mérito das viagens, que tanto me agradam e infinitos horizontes me abrem. Com esses versos, o velho mestre nos leva a refletir sobre o verdadeiro conhecimento, tão difícil como necessário, do eu mais profundo com seus mitos.

E especialmente quando escrevemos sobre o nosso e os outros mundos, é o espaço mítico que adentramos, a nossa realidade interna, apossando-nos da geografia própria, ou alheia, apenas para transformá-la em símbolos, em matéria de sonho.

Um alentejano poderia escrever sobre Minas sem jamais minha região ter visitado. Eu o entenderia: o imaginário não se limita ao tempo-espaço, tem a sua característica dinâmica por onde transita todo o universo.

O mito é recorrente, eterno, ultrapassa o humano. Independente, caminha com as próprias, teimosas, pernas, é de todos, e ainda não se fixa, não é prerrogativa do Alentejo, nem de Minas, nem de ninguém.

Fernando Campanella

* POEMA 47
A SABEDORIA INTERNA
Para conhecer o mundo
Não é necessário viajar pelo mundo.
Posso conhecer os segredos do mundo
Sem olhar pela janela do meu quarto.
Quanto mais longe alguém divaga,
Menor é seu saber.
O sábio atinge a sabedoria
Sem erudição;
(Lao Tsé, Tao Te Ching)




( O Alentejo) "...é uma saudade sem dor, um sentimento que traz a cada dia esforçado um secreto sabor, a sensação inebriante de que, bem perto de nós, é possível encontrar o paraíso perdido.À vista de todos, o Alentejo é cofre fechado com chave no coração." (http://www.visitalentejo.pt/vpt )

Veja o lindo vídeo sobre o Alentejo:



A FLOR(MAIS)BELA DO ALENTEJO


http://4.bp.blogspot.com/_

VERSOS DE ORGULHO

O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho ! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.

Porque o meu Reino fica para além ...
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus !
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém !

O mundo ? O que é o mundo, ó meu Amor ?
__O jardim dos meus versos todo em flor ...
A seara dos teus beijos, pão bendito ...

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços ...
__São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito.

Florbela Espanca


VOZES DO MAR

Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d’oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...

Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d'epopeias?Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz,ó mar amigo?......
Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!

Florbela Espanca


TRÊS MAGOS


Foto by Fernando Campanella

Subo novamente pelas encostas de Minas, a cidade vista um pouco mais ao alto. Passo por árvores decrépitas e seus parasitas como hóspedes, troncos abraçados em remoto apego de amor, nuvens furtando cores ao sol poente. Ao longe, avisto a sentinela dos montes, contrafortes delimitantes da geografia onde me espaço.

Na sinuosa estrada, cercada por matas, coelhos selvagens saltam, distraídos, dos lados. E voam corujas à boca da noite. Um enorme pássaro em retardo ao ninho ameaça à minha frente as poderosas asas.

Impressões de um crepúsculo, de um prenúncio de noite quando a natureza se insinua e me inspira compaixão, uma doce arritmia, com seus traços inusitados.

De repente, do nada, de um sortilégio no céu, uma meia-lua e três risonhos magos ( ou três comadres Marias) desejam-me uma boa noite, ao esmorecer de mais um dia.

Fernando Campanella

domingo, 5 de abril de 2009

KATHERINE MANSFIELD



http://www.nzetc.org/etexts/
Gov13_07Rail/Gov13_07Rail025a(h280).jpg


"Sou tão aferrada à idéia de todas as mulheres terem um futuro definido... A idéia de sentar-me e esperar por um marido é absolutamente revoltante e é realmente a atitude de muitas mulheres..." (Katherine Mansfied, citação tirada do site 'The New Zealand Edge')


Katherine Mansfield teve uma grande importância em minha iniciação literária. Seu conto ‘ A lição de Canto’ foi dos primeiros que li, com que me identifiquei, referência e suave presença ao longo dos anos.

Nascida em Wellington, Nova Zelândia, em 1888, suas primeiras estórias aparecem no jornal do colégio quando ainda menina. Mudou-se para Londres em 1903 para completar sua educação no Queen’s College. Sentiu-se mais atraída pela música, de início, era uma talentosa violoncelista. Retorna à Nova Zelândia em 1906 quando começa a escrever seus primeiros contos. Não se readaptando, tem permissão do pai para voltar à Inglaterra e nunca mais retornou à sua terra natal. Publica seu primeiro livro de contos, ‘Em uma pensão alemã’, em 1919.

Com ‘The Garden Party e Outras Estórias’, publicado em 1922, obteve grande aclamação da crítica. Nesse ano divisor de águas do Modernismo, a escritora, com esse livro, segundo o New Zealand Edge, ao lado de James Joyce (Ulysses) , T.S.Eliot (The Waste Land) e Rilke (Duino’s Elegy), ampliou o alcance da literatura ao tratar de problemas de consciência individual.

Nos contos de Katherine Mansfield que li temos esse fluxo de consciência tomando as rédeas de uma narrativa quase sem acontecimentos, carente de trama. O ambiente externo, as paisagens e os outros personagens dos contos aparecem mais como projeção, ou contraponto a um estado de espírito, de ânimo, da personagem central. O fluxo de consciência é a própria narrativa.

Em ‘A Lição de Canto’, os acontecimentos são mínimos. Miss Meadows, uma professora de música de um colégio de meninas, caminha para sua aula matinal ‘com o desespero – um desespero rude, lancinante – cravado fundo no coração, como um punhal cruel’. Com trinta anos, solteirona, arrumara um pretendente, Basil, de quem ficara noiva. Seu desespero ao se dirigir à sala de aula foi provocado por uma carta recebida em que o amante lhe anuncia a desistência do noivado. O desespero poderoso, que se alia a um frio dia de outono, influencia a escolha da música para o ensaio das alunas, e a essas contamina. Um telegrama do noivo que ela recebe quase ao final da aula provoca toda iluminada transformação em seu estado emocional.

Em ‘A Felicidade (Bliss), o estado de espírito da personagem central dá o tom. Bertha Young, uma mulher casada, de trinta anos, “... tinha momentos... em que sentia uma vontade louca de sair correndo, ao invés de andar normalmente, de ensaiar passos de dança pela calçada, de rodar aro, jogar uma coisa para cima e apanhá-la outra vez, ou ficar parada e rir de ... nada...” E o conto se desenvolve sob o efeito da extrema felicidade dessa esposa que organiza um jantar para o marido e alguns amigos. Mrs. Young flutua nesse êxtase até que um acontecimento cruel, inesperado, faz sua alma despencar dolorosamente ao solo.

Em ‘A Casa de Boneca’ , para mim um dos grande contos da literatura universal, Katherine Mansfied tece a estória em torno da chegada de uma casa de boneca no quintal de uma família de classe média alta, e da excitação das crianças com o novo brinquedo. Duas meninas do bairro, irmãs, de classe social mais baixa, são proibidas pelos adultos da casa de visitar aquela maravilha, aquela casa tão real que mais parecia um sonho. E nas entrelinhas do conto o que se lê é toda a crueldade do mundo infantil, alimentado pelas neuroses e preconceitos do mundo adulto.

Páginas e páginas poderiam ser escritas sobre Katherine Mansfield. Há, além dos contos que escreveu, suas cartas, seu diário, poemas, e a tentativa de uma novela. A escritora teve uma vida tumultuada, um casamento desfeito no dia seguinte à cerimônia, um constante busca de cura para a tuberculose em spas, centros místicos, sem sucesso. Foi vitimada pela doença em 1923, aos trinta e quatro anos.Optei por uma biografia sucinta, priorizando comentários sobre alguns de seus contos que li.

Virginia Wolf, escritora de seu círculo de amizades, declarou que Katherine Mansfield produziu a única escrita de que foi invejosa. Com a expansão da vida interior de seus personagens em suas narrativas, Katherine pode ter exercido algum tipo de influência sobre a criadora de
‘Orlando’.

Com a valorização do conto, nos anos posteriores à sua morte, Katherine foi aclamada como revolucionária neste gênero, alçada à posição de grande escritora da literatura universal.

À época em que escreveu ‘Prelúdio’, estória com uma base autobiográfica, ela nos deixa, em uma carta que escreveu, esta sensível descrição impressionista de sua terra natal:

“... eu tenho uma perfeita paixão pela ilha onde nasci. Bem, no comecinho das manhãs por lá eu me lembro de ter sentido que esta pequena ilha submerge no mar azul-escuro à noite para surgir novamente apenas ao raiar do dia, toda suspensa por lantejoulas brilhantes e gotas resplandecentes...
Fontes de pesquisa:

1) The New Zealand Edge ( http://www.nzedge.com/heroes/mansfield.html)

2) Aula de Canto, Katherine Mansfield, tradução de Edla Van Steen e Edu-
ardo Brandão, Global Editora, 1985.

3) Vídeo com dados biográficos da escritora, e a adaptação de seu conto 'Miss Brill' (A Senhorita Brill) em filme:

http://www.youtube.com/watch?v=NtpKpKb7inM

UM SONETO PARA KATHERINE MANSFIELD


http://www.persephonebooks.co.uk
/assets/images/book_
photos/katherine_mansfield.jpg

O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima! ...(Nunca te apartas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.

Vinícius de Morais



"Vinicius, com este soneto, presta uma homenagem a Katherine Mansfield, nascida da Nova Zelândia e desde há muito considerada uma das melhores escritoras da língua inglesa.Extraído do livro "Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 250. Abaixo, a tradução do soneto para a língua inglesa, realizada por Regina Werneck:"


SONNET TO KATHERINE MANSFIELD

Your perfume, beloved — in your letters
Reborn, blue...— it's your afflicted hands!
I remember them white, light, withered
Pending along abundant corollas.

I remember them, I go... in lands gone through
I inhale it again, here and there awakened
I stop; and so close I feel you, so close
As if in one we had two lives.

Weeping, so little pain! so much I wished
So much to see you again, so much!... and the spring
Already comes so close!... (will you never part

Spring, from dreams and from prayers!)
And in the imprisoned perfume in your letters
To the spring appears and evanesces.

Vinícius de Morais


From : http://www.releituras.com/viniciusm_katherine.asp

A POEM BY KATHERINE MANSFIELD


Primrose1a.jpg

A FINE DAY

After all the rain, the sun
Shines on hill and grassy mead;
Fly into the garden, child,
You are very glad indeed.

For the days have been so dull,
Oh, so special dark and drear,
That you told me, "Mr. Sun
Has forgotten we live here.

"Dew upon the lily lawn,
Dew upon the garden beds;
Daintly from all the leaves
Pop the little primrose heads.

And the violets in the copse
With their parasols of green
Take a little peek at you;
They're the bluest you have seen.

On the lilac tree a bird
Singing first a little not,
Then a burst of happy song
Bubbles in his lifted throat.

O the sun, the comfy sun!
This the song that you must sing,
"Thank you for the birds, the flowers,
Thank you, sun, for everything."

Katherine Mansfield

sábado, 4 de abril de 2009

MARGEM


Foto by Fernando Campanella

O rio que corre por minha aldeia
são martins-pescadores
em odores do mundo,
são cílios cortados
em manchas lubrax.
Mas ainda leva o céu
na envergadura
ainda estende artéria
para o mar.
Nele posso sentar-me à margem
atirar uma pedra na água
em meus silêncios concêntricos
velejar.

Fernando Campanella









quarta-feira, 1 de abril de 2009

NESTE, OU EM OUTROS MUNDOS


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O mundo apagou as luzes no sábado passado, 28 de Março. Monumentos, marcos históricos, edifícios famosos das grandes cidades do mundo tiveram a iluminação desligada por uma hora em protesto contra o aquecimento global, aderindo à proposta ‘Hora do Planeta’ da ONG ambientalista Worldwide Fund for Nature (WWF).

Tal iniciativa em nível mundial, assim como outras voltadas para a preservação do meio-ambiente, sempre traz à tona a indagação urgente, crucial, sobre o futuro da humanidade na terra. E as perspectivas da sustentabilidade de nosso planeta são um tanto quanto sombrias, como avisam cientistas e ambientalistas, uma vez que os focos nevrálgicos de sua depredação crescem em alarmante proporção geométrica.

A inquirição sobre o destino global faz, assim, com que ativemos nossa imaginação, projetando cenários, alguns apocalípticos, outros um pouco mais otimistas. Entretanto, são tantas as variáveis envolvidas quando se questiona nosso futuro que tais projeções não podem passar mesmo de especulações.

Sobreviveria nossa espoliada Terra aos malefícios que lhe são causados, ou seria ela , com tudo que comporta, que nela vive, restituída ao nada, à condição de partícula, de poeira existencial? Ou colonizaríamos outros mundos, uma vez esgotada a viabilidade, e os recursos, de sobrevivência neste ambiente em que ora vivemos?

Em ‘2001, Uma Odisséia no Espaço’, de 1968, aclamado por muitos críticos de cinema como o melhor filme de ficção científica de todos os tempos, o diretor Stanley Kubrick e o escritor e roteirista Arthur Clarke se reuniram para nos apresentar, em ficção, essa alternativa de povoamento de nosso satélite, a lua, e de outros planetas do sistema solar.

Porém, o que engrandece tal filme não são suas projeções de colonização de outros mundos, nem seus efeitos especiais revolucionários, ganhadores do Oscar à época. Seu conteúdo filosófico é o que o torna referência como grande obra do cinema. Kubrick e Clarke propõem uma alteração da consciência do homem para que empreendamos a viagem cósmica a que parecemos estar pré-destinados.

Essa alteração implicaria, a meu ver, em uma percepção mais profunda de nossa insignificância e solidão perante o universo e da grandeza que podemos adquirir na cooperação, no respeito à existência de tudo que nos precede, nos deu origem, e conosco convive. Imbuídos dessa consciência não mais desbravaremos mundos para posteriormente os depredarmos, os destruirmos.

Com a consciência afinada aos postulados da ética, à quintessência das religiões, da poesia, dos ideais mais nobres da humanidade, será possível cruzaramos o portal das estrelas, atendendo ao chamado do poeta Yeats:

“... Vem embora, ó criança humana,
Para as águas, para esta natureza,
Com uma fada, de mãos dadas,
Pois, mais do que possas compreender,
O mundo é crivado de lágrimas."
(W.B.Yeats, Infância Roubada*, livre tradução de Fernando Campanella)

Neste, ou em outros mundos, teremos, assim, o essencial encanto, essa nossa infância restituída , talvez já sem o nosso corpo físico, vibrando em outros níveis de energia, como filhos renascidos das estrelas, do universo.

Fernando Campanella, 01 de Abril de 2009.


Loreena Mckennit sings 'Stolen Child', lyrics by W.B. Yeats

http://www.youtube.com/watch?v=Q7TkyxVIfuk


STOLEN CHILD

WHERE dips the rocky highland
Of Sleuth Wood in the lake,
There lies a leafy island
Where flapping herons wake
The drowsy water rats;
There we've hid our faery vats,
Full of berrys
And of reddest stolen cherries.
Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than you can understand.
Where the wave of moonlight glosses
The dim gray sands with light,
Far off by furthest Rosses
We foot it all the night,
Weaving olden dances
Mingling hands and mingling glances
Till the moon has taken flight;
To and fro we leap
And chase the frothy bubbles,
While the world is full of troubles
And anxious in its sleep.
Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping
than you can understand.
Where the wandering water gushes
From the hills above Glen-Car,
In pools among the rushes
That scarce could bathe a star,
We seek for slumbering trout
And whispering in their ears
Give them unquiet dreams;
Leaning softly out
From ferns that drop their tears
Over the young streams.
Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than you can understand.
Away with us he's going,
The solemn-eyed:
He'll hear no more the lowing
Of the calves on the warm hillside
Or the kettle on the hob
Sing peace into his breast,
Or see the brown mice bob
Round and round the oatmeal chest.
For he comes, the human child,
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than he can understand.

(Literature Network » William Butler Yeats » The Stolen Child)